Imagem ilustrativa da imagem No tempo das charretes
| Foto: Oswaldo Leite/ Acervo Museu Histórico de Londrina

Reportagem desta Folha lembrou o tempo das charretes, que vivi menino na Capital do Café. Tive a graça de meninar quando os cavalos iam rareando, o povoado de madeira já tinha virado cidade de alvenaria até com os primeiros edifícios, então, as charretes eram como símbolos vivos da Londrina pioneira.

Essa transição da rurbe para a urbe também se via na pavimentação das ruas, como a Rua Maranhão onde um dia a meninada estava jogando bétis, noutro dia a terra estava coberta de paralelepípedos.

A charrete, com suas rodas e patas, era um híbrido rurbano que seria aposentado pelo asfalto, enquanto a própria sociedade se urbanizava com o êxodo rural. Quando demos adeus às charretes, também demos adeus ao colonato da cafeicultura, mudando profundamente nossa História, com uma massa de colonos dos cafezais se tornando operários, autônomos ou empresários na cidade. Isso tudo, porém, só passei a ver com o tempo e os livros que me deram olhos históricos. Menino, minhas lembranças marcantes de charretes são muito particulares.

Primeiro, o dia em que de charrete a mãe me levou a um curador na periferia, então, ainda a uma pernada do centro, mas com a chuva as ruas tinham virado um barreiro só. O cavalo levantou o rabo e obrou, e aquela fumegante manifestação de vida me fascinou. Com minha espada de pau, cutuquei bem ali de onde saí aquilo – e o cavalo desembestou! Depois de controlar o bicho, o carroceiro falou que eu não fosse besta de fazer aquilo de novo.

O menino viu, então, que as charretes serviam principalmente aos pobres e remediados, inclusive as putas pobres que não tinham como imitar as putas ricas que zanzavam de táxi pela cidade. Paravam aqui e ali no comércio, deixando perfume pelo ar, comentários dos homens e cochichos das mulheres. Eu jogava búrica, na rua ainda de terra, quando uma desceu de charrete e disse ah, que menino bonito, tome um doce – e me deu um bombom que fui correndo mostrar à mãe, todo orgulhoso do presente que fui imediatamente proibido de comer, além de avisado para jamais aceitar doce de estranhos. Pois podiam me levar embora, sumir comigo! Chorei, passando a manter distância de charretes.

Mas depois em Assis, onde fomos morar nos meus oito anos, na saída do grupo escolar uma charrete passou em disparada na rua, com mulher e menina gritando apavoradas na boleia. Um sujeito do quarto ano, já mocinho, pulou sobre o cavalo e tomou a rédea, parando o bicho e ganhando aplausos e até, no fim do ano, homenagem da escola em cerimônia onde batemos palmas até doerem as mãos, porque um de nós era herói.

Foi meu primeiro herói depois de meu pai. Depois fui vendo os heróis do cinema e conhecendo os heróis dos livros, todos lutando por uma causa, por uma crença ou por uma pátria, e só aquele rapagão, que ficava sozinho no recreio por vergonha de estudar entre meninos, só ele tinha se atirado ao dever sem vacilar e sem motivo além da mais pura e simples humanidade. Coisa do tempo das charretes.

(Corrigindo bobeira da crônica anterior: é o “i” e não o “e” de iphone que significa individualidade, informação e inovação)

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