Lembranças e mudanças
O rústico sobrado da pensão, onde hoje é uma loja chique, tinha bar na frente, onde o menino tomava refris que também desapareceriam
PUBLICAÇÃO
sábado, 24 de junho de 2023
O rústico sobrado da pensão, onde hoje é uma loja chique, tinha bar na frente, onde o menino tomava refris que também desapareceriam
Domingos Pellegrini

A Pensão Alto Paraná de meus pais tinha setenta camas mas fazia o dobro de refeições, para freguesia da vizinhança, além da usual freguesia com muitos peões de um tipo que logo sumiria, os derrubadores de mata.
Como o café precisava de mais e mais terras em toda a região, eles eram bem pagos e, depois de semanas derrubando mata, chegavam à pensão com os bolsos literalmente cheios de dinheiro. Compravam roupas bonitas e andavam se supliciando com novas botas ou mesmo sapatos de verniz, e alguns até arrancavam dentes para sorrir com dentes de ouro.
Contavam que eram chamados derrubadores de mata porque mais derrubavam do que cortavam árvores. Eram derrubadas em fila, uma fazendo desabar outra, que derrubava mais outra, numa linha de tombos. Para isso as árvores tinham o tronco cortado só até a metade, depois derrubava-se uma para derrubar as outras, poupando trabalho e ganhando rapidez naquele tempo sem motosserra.
Assim manejando muito machado, eles tinham grandes calos que o menino sentia quando lhe passavam mão na cabeça, mas homens tão fortes eram também capazes de gentilezas. A mesa de doces – romeu-julieta ou mamão ou abóbora em calda - ficava num canto do refeitório e, depois de comer e antes de ir pegar o doce, cada um lambia seu prato com pão, para virar de boca pra baixo e usar o fundo, assim poupando os pires de sobremesa.
O sortido, prato-feito, era um colosso: o fundo era cheio de feijão, coberto com uma pequena montanha de arroz e legumes e, por cima, a carne cozida com batatas ou um baita bife – que, para ser cortado, antes era preciso comer parte do prato abrindo espaço.
Alguns daqueles mascates abririam pequenas ou grandes lojas. O agenciador, que buscava hóspedes na rodoviária, viraria taxista, quando os carros foram substituindo os jipes até nas estradas. A Rua Maranhão era ainda de terra, e gente dos sítios veio ver tal progresso quando foi pavimentada com paralelepípedos (que, cobertos por alfalto, são só o que restou ali daquele tempo).
O rústico sobrado da pensão, onde hoje é uma loja chique, tinha bar na frente, onde o menino tomava refris que também desapareceriam, sodinha, crush, grapette... E, como o Cine Ouro Verde era só quadra e meia acima, podia ir sozinho à matinê, levando o dinheiro para a entrada num bolso e noutro bolso para o guaraná, e também com maço de gibis para trocar com a meninada.
Depois de chuvarada apareciam caminhões com correntes nos pneus, embarreados de enfrentar atoleiros. e jipes também tão embarreados que, diziam, não dava para ver a cor da lataria.
Uma noite, em 1959, o menino foi em carroceria de caminhão ver os fogos de inauguração da represa do Lago Igapó, e vários adultos disseram que eram fogos bonitos mas o lago era longe demais da cidade... que hoje envolve o lago.
Onde era a casa natal do menino, diante de pensão, hoje se ergue alto edifício. Decerto a gente lembra tanto da Londrina de outros tempos porque nossa cidade mudou muito, é como querer conservar ao menos na memória um pouco do que se foi. Assim, Londrina é cidade de muitas lembranças porque de muitas mudanças. Uma cidade muito viva!
* A opinião do colunista não reflete, neceassariamente, a da Folha de Londrina.

