São dois dias de feijoada, não porque fazemos um festim como os ricos da antiga Roma, é porque a feijoada fica mais gostosa aprontada num dia para comer noutro. Então começamos à tardinha e lá pelas nove da noite está pronta, aí é deixar o caldeirão tampado para só esquentar antes do almoço, podendo então preparar sem atrapalho os complementos, arroz, farofa, vinagrete, couve e laranjas descascadas.

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O aperitivo é caipirinha rosada, feita com limão-rosa, pinga amarela e açúcar demerara ou, para os veganos, mascavo. Com distintos detalhes: a pinga e os limões são gelados antes, para não derreterem o gelo aguando a bebida, que não é mexida com colher mas chacoalhada no copo tampado com a mão. Fica uma caipirinha muito autêntica e chique que só.

Voltando à feijoada, usamos todas as carnes usuais menos o charque de carne bovina, que parece destoar das carnes suínas. Devidamente dessalgadas de molho um dia antes, primeiro vão para o caldeirão as carnes “das pontas do porco”, pés, orelhas e rabos, para aquela fritada na própria gordura com cebola. Daí juntamos o feijão e água fervente, e só hora ou mais depois juntamos as costelinhas defumadas, que já passaram hora no forno para perder gordura. O paio também passa pelo forno, mas só irá para o caldeirão depois do fogo desligado e junto com chimichurri; depois pimenta cada um pega a seu gosto no prato.

Só que o feijão, cozinhando horas, vira quase um caldo grosso, e tem gente que gosta de “ver feijão na feijoada” ou “sentir os grãos na boca”. Então cozinhamos uma segunda parte de feijão em panela de pressão, deixando ao ponto mas apenas salgando, e juntamos ao caldeirão antes de desligar o fogo e deixar a feijoada descansar para ser reesquentada no dia seguinte, ganhando muito gosto.

Fazer feijoada dá um baita trabalho que é porém muito gostoso como tudo que é feito com gosto, pleonasmo virtuoso. E a gostosura é prolongada congelando porções, estendendo para outros dias nosso dia de feijoada.

A crença de que a feijoada é criação dos escravos na senzala foi muito desmentida, já desde que Câmara Cascudo revelou ser comida mais da casa-grande que da senzala, onde o mais comum era mesmo o feijão só com farinha. A origem da feijoada estaria mais nos cozidos europeus, com carnes ovinas e bovinas em vez de suínas e trocando feijão ou ervilhas pelo feijão-preto, que é de digestão mais difícil mas suporta o longo cozimento para as carnes.

Para não dar má digestão, reza a lenda que deve ser consumida completa, com todos os complementos. Lembro de alguém que comeu três pratos, cada um acompanhado de duas caipirinhas, e acabou mal, lastimando-se de dar vexame, até que achou desculpa: - É que não comi o couve...

Sobremesa: sorvete de limão coberto de rapadura ralada. Sorvete no inverno, sim, até porque feijoada é um prato nacional mas não é racional.

E pode terminar como no poema de Vinicius: “Que prazer mais um corpo pede / após comido um tal feijão? / Evidentemente uma rede / e um gato pra passar a mão”...