Correndo no corredor

O homem sai do elevador, depois de limpar com bucha o botão que apertou. Vai até a porta do apartamento, tira os sapatos e bate palmas. A mulher abre, ele entra, ela sai enquanto ele entra. Na sala ele passa pela filha, mantendo distância, e acena, a menina acena, daí ele se fecha no banheiro.

A menina fica vendo a mãe limpar lá fora os sapatos do pai, voltando e lavando as mãos para terminar o jantar, pegando coisas na geladeira, lidando na pia e no fogão. Eu queria ser grande, diz a filha, e a mãe: porque?! Pra ter o que fazer, diz a menina entre brinquedos espalhados.

Quando o pai sai do banheiro com máscara, a menina olha a mãe, que vai checar a máscara, ajeita, arruma, depois dá um olhar aprovativo e a menina corre para o pai.

O pai levanta a filha nos braços, abraça apertado, olha nos olhos, torna a abraçar demorado, até a mãe dizer chega, por hoje chega. A menina continua agarrando o pescoço do pai, a mãe pega nos braços dizendo você prometeu, só um abraço depois do banho do pai.

Na mesa ele tira a máscara dizendo ufa, a mãe conta que a filha estudou direitinho à distância. Ele fala olhando longe:

- Meu avô andava milhas a pé em estradinha rural pra ir à escola, agora a escola vem a nossa filha...

- Pois é... – a mãe também olha longe – Se um dia metade dos alunos continuarem no ensino à distância, já pensou que economia fará o Estado com menos professores?

Tomara que então, pensa alto o pai, haja dinheiro para investir mesmo em educação...

A menina cisca a comida até perguntar:

- Eu nunca mais vou ver minhas colegas?

Pai e mãe se olham, um diz que ela voltará à escola, sim, e outro diz que só vai continuar a estudar em casa quem quiser, ninguém ainda sabe quando, enquanto o bichinho não for embora...

- Bichinho fiadaputa – a menina solta, o pai se espanta, a mãe pergunta de quem ela ouviu isso.

- O vô falou no zap.

Pai e mãe se olham, engolem, a menina pergunta porque o bichinho quer morar dentro das pessoas. A mãe explica: é que o bichinho existe desde antes de existir gente no planeta. É um bichinho tipo bactéria, e as bactérias foram os primeiros seres vivos, começaram a viver no mar quando nem existiam peixes, vida nenhuma. E todos os seres depois vieram das bactérias, viraram peixes, baleias, macacos, gente. Mas algumas bactérias também passaram a viver na terra mas continuam bactérias, e, com saudade do mar, procuram entrar no pulmão da gente que é molhadinho.

- O vô falou – é a vez da filha olhar longe - que queria matar o bichinho que nem a vó matava piolho, assim, ó – e junta as unhas dos polegares estalando os lábios.

O pai vê o próprio pai na filha, a mãe olha os brinquedos espalhados, a menina lembra:

- Vamos correr no corredor, pai?

Saem pai e filha, a mãe atende o zap:

- Pai? Tudo bem, tua neta e teu filho estão felizes correndo lá fora. Não, pai, não estão na rua, nem no parque, só descobriram que nosso apartamento aumentou, é, estão correndo no corredor!