Vejo, com sangue nos olhos, a foto do indiozinho yanomami subnutrido à morte. Minutos antes, havia visto (Instagram) uma caterva atacar o padre Júlio Lancellotti, porque o pároco segue dando de comer aos famintos.

Essa simetria assimétrica se apossou do homem que sou, golpeando meus dias de convívio com a horda fascista a criação humanista que mereci e vou honrar ao último suspiro – quem sabe para apagar a vergonha dolorosa do indiozinho morto de fome pela atuação do desgoverno passado, que deu um boi às piranhas para passar sua boiada neoliberal.

Há mais miséria entre o céu e a terra do que sonha nossa pálida tentativa empática de ver no outro o reflexo de nossos anseios. Tudo que não é luz se esvai na sombra covarde da imagem que me tomou a retina, povoando os famélicos inventos de meus sonhos na expressão de entrega daquele pequeno índio.

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Os fascistas, ao levarem a miséria sócio econômica do garimpo clandestino e predatório para as terras indígenas, abandonando ativismos e políticas públicas que protegiam aquele povo, conduziram os originários ao caminho da morte, pavimentado na violência de ver nos peles vermelhas um desvalor econômico e não pessoas de carne e osso – muito osso ultimamente...

Ao tratar o yanomamis enquanto pedra de tropeço de suas pretensões econômicas, os fascistas que lhes negaram proteção e garantia condenaram os que já se foram. Esse entendimento me amarga a boca e nega os magros sonhos de convívio que aprendi desde pequeno em casa.

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Não que eu esperasse uma ópera de proteção às minorias, suposto que valor e empatia no Brasil de nossos dias resgataram (para mim) o mito de Pandora, a primeira mulher, naquilo que o esgoto moral dos que não se condoem com o próximo está à céu aberto e vem alimentando a narrativa estabelecida desde sempre: é preciso afastar o PT; vamos nos tornar uma Venezuela; vão invadir a sua casa e tirar você de lá; irão acabar com a propriedade privada – dentre outras mentiras mais.

Para o gado iletrado que não conhece o significado das palavras que usa, o mito de Pandora, por sua versão mais divulgada, remete a criação de uma mulher (Pandora) a mando de Zeus, com o propósito de se vingar da humanidade. Aqui, vale lembrar que Zeus estava enraivecido com a gente porque Prometeu deu aos homens o segredo do fogo – que bobagem Zeus!

Ao ser enviada à terra, Pandora levou consigo um jarro (que muita gente chama de caixa – daí a origem da expressão: caixa de Pandora), com a recomendação de não abrir o tal pacote. Curiosa feito as pessoas criadas com um propósito, Pandora abriu sua caixa, libertando os males então desconhecidos do homem – doenças, guerras, ódio, mentira, fascismo, homofobia, xenofobia, racismo. Desesperada, Pandora consegue fechar a caixa, mas mantem em seu interior a esperança.

A esperança prisioneira em uma caixa faz pensar no país que estamos, no modelo de civilização que queremos, quando valores tão antagônicos (morte e vida) são baralhados no xadrez da história, em tempo de não significarem o que representam, e sim o que a narrativa da extrema direita pretenda que signifiquem.

Ao abandonar o dever de cuidado com os povos originários traímos nossa essência, naquilo que conviver reclama não deixar seguimentos sociais para trás.

As muitas mortes dos yanomamis, leio nas mídias digitais, sucederam os vários e diversos pedidos de socorro da comunidade e foram causadas diretamente pela intervenção política que se deu na Funai. Sabe aquela conversa fiada da irrelevância dos povos originários em face das necessidades econômicas da extração das riquezas de suas terras? Então, deu nisso!

Zero de empatia não faz um país. Quando muito faz uma milícia. E é o que tentamos deixar de ser de primeiro de janeiro para cá, suposto que o exílio em que nos encontrávamos em relação ao outro conduziu a uma ‘solidão de todos’, parindo o ovo que eclodiu.

Nesta altura, não resta de mim senão lembranças e lamentos; lembranças do que perdi, lamentos por não ter feito um enfrentamento ainda maior. A dor dos yanomamis, enquanto dor originária, é a medida da dor que não me dói. Me mata.

É cedo para morrer, ainda que somente os mortos saibam, efetivamente, o caminho do cadafalso. Resta muito da história para ser contada e, principalmente, vivida, mas sei que as flechas latinas darão conta do desatino neoliberal.

É hora de viver. É tempo de, sem esquecer, seguir adiante mais um bocadinho, suposto que não lembrar parece com não viver a plenitude do que somos, na incapacidade histórica que estamos. É hora de colorir a vida em preto e branco e bancar uma história de empatia.

Não ouso falar de amor, que "o amor nesse tempo é muito cedo" e não há uma equação que sobreponha tempo e homem sobre a imensidão de suas histórias. Não podemos viver mais de narrativas. É da vida que vivemos e viver reclama um palco maior, afetado pela multiplicidade de relações que a história demanda.

Bem sei que "não há palavra que alcance o mundo e ainda assim escrevo", pois que senão morro. Morro a morte dos índios, a falência dos sentimentos, a negação do convívio, a sagração de Iscariotes, a maldição de Bambino, o apito maldito de amarilla, a dor de Márcia e Renato, a solidão dos homens que não viram o dia amanhecer.

Morro, principalmente, o tempo passando sobre minhas histórias, vencendo no pó do caminho o significado de minha vida. Preciso reaprender a amar, que a dor da boiada passando trouxe um inferno aos meus lábios, impondo o amargor do ódio ao fermentado da última Brahma que tomei com meu pai.

É tempo de despertar e esmagar o fascismo!

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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