O Brasil colonial e imperial manteve-se amparado por um sistema de produção escravagista, vigente por mais de 300 anos, estruturado em uma base política centralizadora e um aparelho de justiça precário, em que o poder do Estado – parafraseando José Murilo de Carvalho – terminava na porteira das grandes fazendas. Não é de estranhar que as primeiras identificações de financiadores dos atos golpistas, realizadas pela Polícia Federal, apontem para alguns fazendeiros do Centro-Oeste, grotão de onde brotam os que cantam um país míope e saudoso do passado.

A República colocou abaixo a senzala e conservou a casa grande. O mandonismo manteve-se resistente durante a República Velha, incapaz de assegurar cidadania e de incluir as pessoas na participação da vida pública. Até 1930, pouco mais de 5% da população votava. Apenas alguns influíam na condução do Estado. Política era coisa dos coronéis, a quem o andar de baixo devia gratidão pelos pequenos favores e benfeitorias realizadas com dinheiro público.

A revolução de 1930 colocou Getúlio no poder e com ele o ideário de modernização do Estado. A mulher conquistou o direito de votar, a Justiça eleitoral foi criada, os trabalhadores tiveram direitos reconhecidos e a industrialização deu os primeiros passos. Tudo isso, porém, desaguou no Estado Novo, na ditatura varguista testemunhada por um ilustre escritor brasileiro, Graciliano Ramos, cujo relato memorável encontra-se em Memórias do Cárcere.

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Os regimes totalitários na Europa foram colapsados ao findar a Segunda Guerra Mundial, pondo abaixo também o Estado Novo. Com a redemocratização em 1946, concorreram à presidência da República dois militares, o ex-ministro de guerra de Getúlio, Eurico Gaspar Dutra, e o Brigadeiro da Aeronáutica, Eduardo Gomes. Uma clara demonstração de que os militares continuavam bem ativos na política e assim permaneceriam nos próximos quarenta anos.

Entre 1946 e 1964, breve período de democracia, o país assistiu ao suicídio de Getúlio Vargas, a tentativa de golpe contra JK, a renúncia de Jânio e a deposição de Jango, o que confirma um período de muita turbulência e pouca estabilidade política. O golpe militar de 1964 mergulhou o país novamente em uma ditadura. Na última eleição presidencial, em 1960, apenas 20% da população votava.

O apagão político durante o regime militar também foi acompanhado de um apagão na formação da inteligência nacional, proveniente de uma instituição tardiamente criada no Brasil: a universidade. Os coronéis resistiram ao iluminismo. Não à toa que os filhos da casa grande depõem contra o conhecimento, atacam as universidades, negam a ciência, esquartejam obras de artes e defecam nos símbolos da República. Faltam-lhes inteligência e cultura, algo que nunca apreciaram e que suas fake news não fornecem.

A constituição de 1988 permitiu, pela primeira vez na história republicana brasileira, a efetivação da cidadania. Foi na eleição de 1989 que a totalidade dos brasileiros pôde votar e, de forma soberana, influir no destino país. São 35 anos consecutivos de estabilidade constitucional e de respeito à soberania popular.

Nesse período, no entanto, a democracia vem sendo vilipendiada. Na casa grande sempre há um capitão do mato disposto a incentivar matilhas a ladrar contra a legalidade e a legitimidade das instituições. Enquanto a família patriota e cristã, do alpendre da casa grande, financia o golpe, segmentos religiosos moldam as almas das ovelhas, transformando a fé numa fábrica de fanáticos. E os militares, infelizmente, fartos de cloroquina, parecem propensos a uma missão menor: pintar os palanques das fazendas ao som do menino da porteira, ansiosos para ver a boiada passar. Nas paragens do Brasil profundo, de longe se ouve a nostalgia do modão. Toca o berrante seu moço, que o atraso pede passagem.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.

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