SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Até o final de 2013, um terreno público abandonado de 400 metros quadrados localizado no final da rua da Uvaias, na Saúde, zona sul de São Paulo, recebia entulho, o mato crescia e a sujeira favorecia a proliferação de ratos.

Inconformado com o cenário que via, o ambientalista Sérgio Shigeeda, 61, decidiu reunir os vizinhos, pedir autorização para os órgãos responsáveis e montar uma horta no local.

Após a retirada de mais de 20 caçambas de lixo e muito trabalho braçal, com emprego de enxada, pá, muito adubo e mudas, nascia ali a Horta Saúde, que hoje é local de cultivo de mais de 20 espécies diferentes de folhagens, plantas medicinais, PANC´s (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e ainda abriga um meliponário (abrigo de abelhas), além de compostagem para gerar adubo usado na própria horta. "Como morador eu queria que a área fosse limpa e que não convivêssemos com problemas de segurança", afirmou Shigeeda.

A Horta da Saúde, que é tocada pelo trabalho de 40 voluntários, é um exemplo de como moradores da cidade de São Paulo têm se organizado para ocupar espaços ociosos, abandonados ou não, para trabalhar a favor da natureza, propagando conceitos da permacultura e agroecologia.

Esses conceitos consistem em produzir alimentos saudáveis por meio de recuperação de solo e conservação do ambiente, sem o emprego de agrotóxicos e partilhando o que é produzido entre aqueles que literalmente colocam a mão na massa, em sistema de autoconsumo.

"Muitas vezes essas hortas são geridas por pessoas que se conhecem e promovem mutirões", explica o gestor ambiental André Bizoti, 33, presidente da União de Hortas Comunitárias de São Paulo.

A estimativa é a de que existam mais de cem dessas hortas, segundo está catalogado no Sampa + Rural, uma plataforma da Prefeitura de São Paulo que concentra dados sobre iniciativas para tornar a "selva de pedra" da capital mais sustentável.

O fato de serem comunitárias não significa que qualquer pessoa pode entrar e plantar o que bem entender. O acesso aos locais é permitido, porém, é necessário entrar em contato com quem cuida dos espaços. E no melhor estilo quem planta, colhe, doações até acontecem. Mas a produção, em geral, vai para quem está envolvido nessas hortas.

Algumas dessas hortas nasceram durante a pandemia. Uma delas é a Horta Monte Alegre, criada a partir da iniciativa da aposentada Silvana Mello, 58, que, em julho de 2020, decidiu limpar o matagal que via no muro da calçada oposta da sua casa.

Também durante a pandemia, em outubro de 2020, a horta da Ocupação 9 de Julho, localizada na Bela Vista (centro de SP), foi retomada. Segundo conta o fotógrafo Edouard Fraipont, 49, militante do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), movimento que ocupa o antigo prédio do INSS, a horta sempre existiu, porém, o envolvimento do autônomo Vanildo Stanislau, 61, foi determinante para retomar o espaço e ampliá-la.

Stanislau integra as cerca de 120 famílias que ocupam o prédio. Ele conta que ainda criança, aos oito anos, criou uma horta. "Eu comecei a fazer e gostava. Inclusive ninguém ajudou", diz.

O autônomo conta que seu desejo sempre foi o de estudar agronomia, sonho que nunca conseguiu realizar.

"Eu trabalho no Brás e é um trabalho muito agitado. E eu nunca consegui ficar parado", afirma. "Eu tinha a necessidade de fazer alguma coisa. Daí eu vi na pandemia a oportunidade de recomeçar [a horta]. Eu comecei a observar e pensei comigo, 'porque não plantar um pé de alface?'. Vai servir pra mim, pra gente que mora aqui", diz.

Hoje o espaço fornece alimento que é usado na cozinha da ocupação, geralmente em almoços de mutirão, quando as pessoas se reúnem para realizar trabalhos de melhoria no local. Entre os nomes que já pilotaram os fogões da cozinha da ocupação chefs famosos, tais como Helena Rizzo, do Maní, Gustavo Rodrigues, do Lobozó, Janaina Rueda, do Bar da Dona Onça, e Edson Leite, do Gastronomia Periférica,.

O espaço também abriga atividades para crianças, oficinas de conscientização ambiental e de gestão de resíduos.

OUTRAS HORTAS

A plataforma Sampa+Rural também indica a existência de 170 hortas instaladas em equipamentos públicos, tais como escolas, postos de saúde e centros culturais.

Dependendo do local onde está instalada, cada uma dessas hortas têm uma finalidade. Nas escolas, geralmente são ministradas oficinas de educação ambiental. Por vezes os alimentos também são usados.

A Horta da Faculdade de Medicina da USP foi criada em 2013 por voluntários. Seu objetivo é o de ensinar como a alimentação saudável pode auxiliar a saúde. Mais recentemente ela foi usada na recuperação de pacientes vítimas de Covid-19.

APOSENTADA COMEÇOU HORTA COMUNITÁRIA NA PANDEMIA

Confinada em casa devido à pandemia e incomodada com o mato alto do muro da calçada oposta à casa onde mora desde a infância, a aposentada Silvana Mello, 58, decidiu colocar a mão na massa e podar o matagal.

Era julho de 2020, e o pouco que ela sabia sobre lidar com a terra foi a lembrança dos ensinamentos de um curso de jardinagem no longínquo 2011. Nascia ali a Horta Comunitária Monte Alegre. "Nossa, salvou a gente do tédio. Foi ótimo", afirmou.

Como sua especialidade era análise de sistemas, e Bolsa de Valores, onde trabalhou durante anos, recorreu a ajuda de sua secretária do lar, de um encanador amigo e de um segurança da rua onde mora. Vez ou outra alguns vizinhos ajudam.

Hoje eles cuidam de uma área de 1.600 metros quadrados que fica embaixo de uma linha de transmissão de energia elétrica.

Todos são amadores, mas o segurança da rua, Barnabé Moreira Oliveira, 58, mais conhecido por Beto, é o mais experiente em lidar com a terra. Como já plantou milho, feijão e melancia em seu estado natal, Bahia, ele é o "especialista" da turma.

"A terra aqui não é muito boa. Tinha e tem muito entulho. Mas a gente vai tirando, colocando adubo. E tá nascendo. Vamos ver", analisa Beto.

Diomar Rodrigues, 52, a Didi, é expert em ajudar Silvana em sua casa, onde trabalha há sete anos. Porém, nunca tinha plantado nada. No último ano, também decidiu colocar a mão na massa na horta. E diz que mexe na terra não para agradar a patroa, mas para agradar seu próprio estômago. "Daí eu já comi mandioca, alface, mamão, coentro. É muito bom", diz.

Nenhum deles sabe ao certo quantas culturas existem lá. Até agora Silvana diz que todos já saborearam pencas das doces bananas que crescem ali, e ao menos outros 20 tipos diferentes de hortaliças, frutas e temperos, tais como cenoura, tangerina, couve, quiabo, beterraba e manjericão.

PROJETO QUE EMPREGA EX-MORADORES DE RUA QUER CRIAR 50 NOVAS HORTAS ATÉ FINAL DE 2022

Em 2001 o baiano Joseval Machado, 42, decidiu vir para a "cidade grande" tentar a sorte.

Deixou o filho em Salvador e veio para São Paulo em busca de trabalho. Durante três anos trabalhou como prensista. Veio o desemprego e foi morar na rua, onde ficou por quase dois anos.

Saiu das ruas e foi para um centro de acolhida -nome pelo qual são conhecidos os antigos abrigos. Lá ouviu uma palestra de um projeto que ensinava a lidar com a terra, plantar, e, caso se adaptasse, o emprego. Há quatro anos atua numa horta social urbana da Arcah (Associação de Resgate à Cidadania por Amor à Humanidade) e com o salário que ganha paga, há quatro anos, o aluguel de sua casa.

"Eu fiz o curso, gostei, me adaptei e me chamaram. Aqui eu aprendi a roçar e cuido de tudo", afirma, esboçando um sorriso.

A Arcah mantém sete hortas sociais urbanas na cidade de São Paulo. A ideia é que tenha mais 50 até o final de 2022, segundo seu presidente, Felipe Sabará, ex-integrante das gestões de João Doria (PSDB) à frente da Prefeitura de São Paulo e do governo estadual.

O projeto visa transformar espaços vazios da cidade, sejam telhados ou terrenos baldios, em hortas orgânicas, certificadas. Ao mesmo tempo, oferece capacitação para pessoas em situação de rua. As que mais se destacam são convidadas a trabalhar nas hortas.

Apesar do caráter social, o foco das hortas é o comercial e o projeto é privado. Os mais de 40 tipos de culturas desenvolvidas, a maior parte hortaliças, temperos e legumes, são vendidas. No caso da horta que fica num grande terreno atrás do Expo São Paulo, na região do Jabaquara (zona sul), 20% de tudo que é produzido vai para doação para a comunidade do entorno.

Quem faz a ponte entre os centros de acolhida e o projeto é a psicóloga Sofia Coelho, 30. Nas palestras, conta como é o curso, como é a chamada jornada de autonomia que ele propõe e a remuneração. Durante as 15 semanas, onde são ministradas 176 horas de curso, os alunos recebem alimentação e transporte. Eles só passam a ser remunerados e "colocar a mão na massa" se forem contratados.

"A prova final é montar um canteiro", afirma.

Com a proposta de abrir 50 novas hortas, a demanda de mão de obra deve aumentar bastante.

E mais pessoas tais como Paula Soares, que não quis revelar a idade, devem ser empregadas. Ela está há um ano na horta da zona sul. Diz que aprendeu a lidar com a terra com o seu pai. Antes ela lidava com reciclagem.

Na reciclagem vez ou outra conseguia recuperar telas e tintas, que levava para casa para pintar. Os desenhos prediletos eram paisagens, flores e florestas. Hoje, suas telas são os canteiros, onde ela dá vida para o que as tintas criavam. "Eu vou desenhando os canteiros e fica show", diz.

PROGRAMA

A Prefeitrura de São Paulo informou que para fomentar a criação de hortas urbanas dentre outras políticas públicas de agricultura, mantém o Proaurp (Programa de Agricultura Urbana e Periurbana), de responsabilidade das secretarias do Verde e Meio Ambiente e das Subprefeituras.

"O pedido para a implantação em área pública pode ser feito tanto por pessoa física quanto jurídica, desde que seja oficializada a solicitação ao poder público por meio de ofício na subprefeitura da região", informa a prefeitura.

Se a implantação for em área privada, não há exigência de apresentação de documento. "Mas é necessário cumprir as legislações vigentes, tais como a de zoneamento, uso e ocupação do solo, legislação sanitária e ambiental", informa.

Ainda segundo a administração municipal, a entidade ou pessoa física responsável por administrar o espaço possui responsabilidades quanto ao zelo, conservação e cumprimento dos termos, ficando o proprietário livre para restringir ou não o acesso. Da mesma forma ocorre quando implantada e gerenciada pelo poder público.

"A venda dos produtos cultivados nas hortas urbanas nos espaços privados é permitida. Quando localizadas em áreas públicas, a comercialização deve ocorrer sem fins lucrativos, ou seja, os ganhos econômicos devem ser reinvestidos no sistema ou alguma destinação de interesse público", diz.

Outro programa vigente é o "Ligue os Pontos", que busca incentivar o desenvolvimento sustentável entre as áreas urbana e rural.

Uma das iniciativas deste outro programa é a plataforma Sampa+Rural, que mapeia diversas iniciativas de de agricultura, turismo e alimentação saudável e também permite que os locais listados possam expor um selo. São dois: o "Nós Fazemos a Sampa+Rural" que é voltado a agricultoras e agricultores, hortas urbanas, mercados, pontos de ecoturismo, iniciativas da sociedade civil e políticas públicas ligadas aos temas da agricultura sustentável e da alimentação saudável.

"O objetivo é dar visibilidade aos paulistanos sobre essa ampla rede de lugares que estão por toda a cidade, além de facilitar a conexão entre eles, estimulando novos negócios", informa a prefeitura.

Outro selo é o "Aqui tem Produção de Sampa", que identifica os estabelecimentos que comercializam produtos de agricultoras/es da cidade, como mercados, feiras, restaurantes e empórios. "Todavia, esse selo somente será fornecido após a confirmação com quem eventualmente produz para esses estabelecimentos. O objetivo é valorizar os espaços que exercem um comércio justo e direto, fortalecendo a agricultura local".

Hortas urbanas - SP

O que são?

As hortas urbanas são caracterizadas justamente por estarem localizadas fora do perímetro rural. Um terço do território da cidade de São Paulo é rural, sobretudo o fundo da zona sul.

O que é uma horta comunitária?

Ela é caracterizada pela união de várias pessoas ou famílias que dividem os trabalhos, as despesas e os produtos empregados. Geralmente ela visa o autoabastecimento alimentar e é cuidada por voluntários.

Escolha da área

escolha o terreno e peça autorização para o órgão público ou privado que for dono; prefira local que tenha boa água ou monte um esquema de captação de água da chuva; é melhor que a área seja próxima do local onde as pessoas interessadas irão realizar o trabalho; confira se a área recebe a luz do sol o dia todo ou ao menos de 4 horas a 6 horas; se não tiver árvores é melhor, para evitar o sombreamento e competição por nutrientes; Fonte: "Manual de Horta" da Prefeitura de São Paulo

Endereços

É Hora da Horta

rua Frederico Penteado Júnior, 308, Casa Verde

Horta Comunitária João de Barro

rua Professor Picarolo, 123, Bela Vista

Horta Ocupação 9 de Julho

rua Álvaro de Carvalho, 427, Bela Vista

Horta do Centro Cultural São Paulo

rua Vergueiro, 1.000, Paraíso

Horta Comunitária Bosque das Mandalas

rua Marquês de Herval, 122, Vila da Saúde

Horta Jardim Guarani

rua Manuel Marques de Sousa, 300, Jardim Guarani

Horta Monte Alegre

rua José Gomes da Silva, 28, São Judas

Horta da Faculdade de Medicina da USP

avenida Doutor Arnaldo, 455, Pinheiros

Horta do Ciclista

avenida Paulista, 2.439, Consolação

Horta das Corujas

avenida das Corujas, 39, Vila Beatriz

Horta da Saúde

rua Paracatu, 66, Saúde

(*) acesso é gratuito, porém, é controlado e muitos pedem para fazer o contato com antecedência. Para saber mais sobre todas as 105 hortas, detalhes sobre horários de visitação, mutirão e o que cada uma cultiva, acesse https://sampamaisrural.prefeitura.sp.gov.br