SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Nos anos 1910, o desafio de explorar o misterioso "rio da Dúvida", no oeste da Amazônia brasileira, uniu dois gigantes do século 20 que, à primeira vista, tinham muito pouco em comum.

O lado brasileiro da expedição era chefiado pelo coronel --e futuro marechal-- Cândido Rondon, que vencera a pobreza extrema e o preconceito em relação à sua origem indígena para se tornar o principal explorador do território amazônico. Do lado americano estava o ex-presidente Theodore Roosevelt, filho da elite nova-iorquina, imperialista belicoso e aspirante a naturalista.

A viagem pelo rio desconhecido seria "minha última chance de ser um garoto", diz Roosevelt em "O Hóspede Americano", minissérie em quatro episódios que chega ao Brasil pela HBO Max. O mergulho do ex-presidente na floresta, porém, acaba se tornando muito mais profundo do que uma simples aventura, já que o submeteu aos maiores riscos e privações de sua carreira e encurtando o aparente abismo entre ele e Rondon.

"Dá para resumir o apelo dessa história com uma única palavra -complexidade", diz o diretor Bruno Barreto, em entrevista por videoconferência. Ou, como ele completou por mensagem, mais tarde, é "um triângulo de amor e ódio entre o poder, a mortalidade e a mãe natureza".

O cineasta conta ter ficado obcecado com a jornada de Roosevelt e Rondon, tema que se somou ao interesse que já tinha pela trajetória do presidente americano. Depois de ler uma pilha de livros sobre a viagem, Barreto conseguiu infectar o roteirista britânico Matthew Chapman com algo desse entusiasmo. "A ideia original era fazer um longa, mas a HBO só trabalha com séries, então conseguimos contar a história nesse formato de quatro capítulos."

As figuras centrais da narrativa são marcadas por uma longa lista de contradições. Roosevelt, o mesmo sujeito que adorava caçar e ajudou a fomentar um movimento separatista colombiano que acabou virando o atual Panamá, também foi um dos primeiros conservacionistas modernos, criando algumas das mais importantes reservas naturais dos Estados Unidos.

Rondon, por sua vez, era um militar declaradamente pacifista e não religioso, adepto da chamada filosofia positivista, numa época em que quase todos os brasileiros eram nominalmente católicos. Com seu lema "morrer se preciso for; matar, nunca", o descendente de indígenas bororos e terenas buscava uma integração pacífica entre os habitantes originais da Amazônia e os demais brasileiros.

Ao mesmo tempo, Rondon impunha sobre seus homens uma disciplina férrea, chegando a matar involuntariamente um deles durante uma sessão de castigos físicos. "Talvez ele fosse mais um passivo-agressivo do que um pacifista", brinca Barreto.

A jornada de dois meses pelo rio --logo rebatizado como rio Roosevelt-- foi um pesadelo logístico e pessoal para ambas as comitivas. O ex-presidente, interpretado por Aidan Quinn, ficou perto da morte por causa de uma infecção óssea que afetou uma antiga ferida, e seu filho Kermit, papel de Chris Mason, quase se afogou numa das muitas corredeiras ao longo dos 800 quilômetros do curso d'água.

Rondon, vivido por Chico Díaz, por sua vez, teve de gerenciar a escassez cada vez mais desesperadora de alimentos para seus homens, a perda de diversas canoas e, por fim, um assassinato --o responsável fugiu para a mata e acabou sendo abandonado pela comitiva. A narrativa intercala as cenas amazônicas com os principais momentos da carreira política de Roosevelt antes da jornada.

"Em geral, tomamos muito cuidado em seguir os elementos da história verdadeira. Os diálogos no meio da Amazônia foram criados para a série, é claro, mas mergulhar na documentação desses personagens nos ajuda a fazer com que eles falem de um jeito que soe genuíno. Por vir de uma família que teve um papel histórico relevante, isso é algo importante para mim", diz Chapman, que é trineto do naturalista britânico Charles Darwin. Segundo ele, de certa forma, os temas darwinistas da natureza como palco de um grande combate estão presentes no roteiro.

Outro elemento importante da narrativa é a maneira como os perigos e o isolamento característicos da mata desnudam a personalidade e as fragilidades de cada um dos viajantes. Roosevelt, por exemplo, começa a minissérie num flashback em que sofre um atentado durante sua campanha presidencial e, mesmo com um tiro no peito --que não atingiu nenhum órgão vital--, vai participar de um comício. "É preciso mais do que isso para matar um alce macho", berra ele, enquanto as imagens na Amazônia o mostram quase inconsciente.

Já Rondon, numa das cenas mais marcantes da série, retira e dobra cuidadosamente sua farda de coronel e, nu, usa uma lança de madeira para capturar um pirarucu. É um momento em que a identidade indígena do militar, até então submersa, aflora. Filho de pai paraguaio, nascido no México e criado no Peru, Chico Díaz diz que sua história familiar foi importante para que ele se aproximasse do lado nativo de Rondon. "É um personagem fascinante, que merece um filme, uma minissérie inteira só para ele", afirma.

As referências da minissérie às ameaças que o ambiente amazônico e seus povos sofrem cada vez mais aparecem de forma relativamente sutil, mas reconhecível. "O senhor acha mesmo que as pessoas vão se contentar em derrubar só uma árvore ou caçar um único bicho por vez quando isto aqui estiver interligado ao resto do Brasil?", pergunta Roosevelt a Rondon.

"Infelizmente, vemos militares brasileiros deixando de lado o respeito que Rondon tinha em relação aos povos indígenas. E é uma atitude que seria o óbvio, como diz o Caetano [Veloso]", pondera Díaz. "Como dois homens que compreendiam a ciência e davam valor a ela, Rondon e Roosevelt certamente ficariam horrorizados com a maneira como ela é ignorada pelos políticos de hoje", afirma Chapman.

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O HÓSPEDE AMERICANO

Quando Estreia em 26 de setembro, na HBO e na HBO Max

Elenco Chico Díaz, Aidan Quinn e João Côrtes

Produção Brasil, 2021

Criação Bruno Barreto

Link para trailer da série no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=QYePkmJMZdU