Vencedores do Pritzker refutam espetáculo em nome de gestos simples
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terça-feira, 16 de março de 2021
FRANCESCO PERROTTA-BOSCH
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Museus com paredes que não parecem feitas para pendurar quadros. Casas com aparência de estufas agrícolas. Centros educacionais semelhantes a galpões industriais. Fachadas que não esclarecem o uso dos edifícios. Formas externas que não indicam suas funções internas. Com esses atributos, o escritório francês Lacaton & Vassal é o vencedor do Pritzker, o maior prêmio de arquitetura, de 2021.
Os sócio-fundadores Anne Lacaton e Jean Philippe Vassal se conheceram na faculdade de arquitetura em Bordeaux, onde se formaram em 1980. Ela nasceu no vilarejo de Saint-Pardoux-la-Rivière; ele, em Casablanca, no Marrocos, onde também passou a infância.
Outra experiência africana foi determinante na formação de Vassal. Quatro anos depois de receber o diploma, ele foi morar no Níger e construiu, numa área desértica, sua casa com gravetos, palha e sacos de juta. Com uma forma circular, era praticamente uma cabana primitiva.
Em 1987, o casal abriu seu escritório em Bordeaux. Eles se mudaram para Paris quando venceram o concurso nacional para o Palais de Tokyo em 1999. Os arquitetos passaram a trabalhar num galpão, em meio ao canteiro de obras.
A encomenda era de um centro de arte contemporânea para ocupar metade de um palácio proto-moderno projetado na década de 1930, na margem direita do rio Sena. Sede do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris e do centro cultural que dá nome ao complexo, o edifício exalava ambiguidade -a estrutura é do concreto armado do modernismo, mas há também uma colunata tal como um monumento da Antiguidade.
O ponto é que uma ala da edificação nunca chegou a ser concluída conforme os planos palacianos originais. E Lacaton & Vassal propuseram a manutenção do aspecto inacabado dessa parte. Assim, o Palais de Tokyo parece estar eternamente em fase de construção, tanto estrutural quanto esteticamente. Nesse sentido, está em sintonia com o projeto da instituição -o centro cultural é um laboratório de experimentações artísticas e não um museu calcado no acervo permanente.
Em meio aos espaços de pé-direito altíssimo e paredes de alvenaria aparente, os arquitetos foram inserindo elementos leves -painéis deslizantes, grades, cortinas, escadas metálicas- para readequações mínimas, deixando bastante em aberto as possibilidades de uso.
Portanto, o Palais de Tokyo se tornou uma espécie de anti-cubo branco. Ou seja, não é um ambiente supostamente neutro para receber obras de arte sem interferência do contexto para sua apreciação. Os ambientes internos, com seu caráter imperfeito, influenciam diretamente os artistas convocados a atuar no lugar.
Emblemáticos na trajetória de Lacaton & Vassal foram também os projetos, feitos em parceria com o arquiteto Frédéric Druot, para reabilitação de quatro conjuntos habitacionais modernistas em periferias de grandes cidades francesas. As premissas estabelecidas -transformar o edifício sem demolir construções, remover famílias ou deslocar moradores.
Na torre Bois-de-Prêtre, ao norte de Paris, em 2011, e em 530 apartamentos no bairro de Grand Parc, em Bordeaux, em 2017, a solução foi erguer esqueletos externos nas fachadas dos velhos prédios. Ou seja, novas estruturas foram acopladas aos antigos edifícios de modo a ampliar a área de cada apartamento, criando varandas e jardins de inverno, ampliando salas e quartos, e abrindo portas e janelas para deixar entrar mais luz nos ambientes internos.
Com essa estratégia de embrulhar, por assim dizer, as edificações originais, os empreiteiros puderam renovar suas infraestruturas e instalações prediais sem obrigar os moradores a se mudar durante as obras.
Edifícios estigmatizados ganharam um aspecto contemporâneo. As fachadas compostas de elementos leves e vidros transparentes deixam revelar, de certo modo, a vida cotidiana das centenas de famílias. E, economicamente, se provou muito mais barato do que a lógica de substituir os conjuntos habitacionais por prédios novos.
Em residências unifamiliares, Lacaton & Vassal alicerçam suas escolhas construtivas numa "cultura da industrialização, nos seus exemplos de influência e otimização", como afirmou o arquiteto Pedro Varella Jiquiriçá em sua pesquisa sobre o escritório francês.
Três projetos residenciais chamam a atenção -a casa Latapie em Bordeaux, de 1993; a casa em Coutras, de 2000; e o conjunto de 14 moradias sociais em Mulhouse, de 2005, são assumidamente low-tech, isto é, construções compostas por materiais banais de catálogo que podem ser comprados em qualquer loja de material de construção francesa.
Nas fachadas e nos telhados são empregadas telhas de fibrocimento opacas e de policarbonato translúcido, conferindo uma estética nada luxuosa de galpão agrícola ou de oficina de subúrbio. Para divisórias e fechamentos internos, são usadas chapas de madeira barata habitualmente usadas como moldes para concretagem e depois descartadas.
As casas têm estruturas metálicas simples, com muito uso de alumínio. Não há detalhamentos sofisticados -os arranjos entre componentes pré-fabricados são conscientemente simplificados. Tudo feito em prol do baixo custo e da rapidez construtiva.
A consequência é a capacidade de ter uma área construtiva maior, com menos material e menor custo. Essa metodologia renega um projeto de decoração feito por arquitetos. Advogando pela liberdade de apropriação dos espaços pelos proprietários das casas, Jean Philippe Vassal afirmou que é "necessário ter confiança na capacidade dos moradores". "Nós sempre nos surpreendemos com a criatividade deles."
Por sua vez, num centro urbano em avançado processo de desindustrialização como a Île de Nantes, a dupla Lacaton & Vassal fez a sede de uma faculdade de arquitetura que mais se assemelha a um edifício-garagem.
A estrutura pré-moldada de concreto e as largas rampas aparentes do exterior parecem servir para guardar carros, mas fechamentos com painéis leves facilmente deslocáveis faz dali um lugar de ensino repleto de espaços flexíveis.
Já o FRAC de Dunquerque ocupa um antigo estaleiro de barcos. Mesmo com finalidade marítima, a estrutura original é alta como um hangar, o que faz dela um lugar excelente para abrigar grandes atividades artísticas.
O escritório de arquitetura decidiu fazer uma edificação gêmea ao lado - a mesma volumetria exterior, mas composta por uma leve pele de chapas translúcidas corrugadas. O interior dessa duplicata é dividido em andares que funcionam para a guarda de acervos públicos e como ambientes de convivência, semelhantes aos nossos edifícios do Sesc.
Esses dois projetos de cunho educativo e cultural reafirmam a crença no material industrializado, mas deixam mais claro que a estética fabril de que os arquitetos do Lacaton & Vassal se apropriam abriga também as cicatrizes da decadência das fábricas ultrapassadas com a evolução tecnológica. No fundo, o Pritzker indica o que se pode fazer de melhor com as obsoletas estruturas de cultura, de moradia e de produção do século 20.

