SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Credores, advogados e investidores aguardam por uma definição do governo federal sobre as regras que vão permitir utilizar precatórios e alguns outros tipos de créditos para pagamento de dívidas com a União e compra de ativos estatais. Entre as preocupações está a opção por uma norma que restrinja o uso desses créditos, como ocorre em alguns programas criados por estados e municípios.

Essas alternativas para quem possui dinheiro a receber da União estão previstas em uma das duas emendas constitucionais originadas a partir da PEC dos Precatórios, proposta do governo Jair Bolsonaro (PL) também conhecida como PEC do Calote.

As emendas promulgadas pelo Congresso em 2021 mudaram a regra do teto de gastos e acabaram com o pagamento anual de todas as dívidas judiciais emitidas até julho do ano anterior.

Entre as opções dadas aos credores estão aceitar um desconto de 40% no valor para tentar receber o dinheiro antecipadamente ou usar uma de cinco hipóteses previstas no texto.

Assim que o governo regulamentar a compensação, será possível utilizar créditos líquidos e certos, próprios ou adquiridos de terceiros, reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para quitar de débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa.

O dono do crédito também poderá comprar de imóveis públicos, ações vendidas em processos de privatização ou direitos disponibilizados para cessão.

O papel pode ser usado ainda para pagamento de outorga de serviço público e demais espécies de concessão.

As hipóteses de compensação valem para União, estados e municípios, mas cada administração deve estabelecer suas próprias regras. Em todos os casos, o precatório e a dívida a serem compensados devem ser do mesmo ente federativo.

Embora o texto da emenda diga que as novas regras têm "auto aplicabilidade" no caso da União, pessoas que atuam nesse mercado esperam por uma orientação ou regulamentação do governo federal para que seja possível fazer esse encontro de contas entre ativos e passivos, afirma Pedro Siqueira, sócio do Bichara Advogados.

"Em tese, não precisaria nem de lei ou portaria regulamentando isso. Muita gente está vendo esse dispositivo, está querendo utilizá-lo, mas tem medo porque não sabe como isso vai ser feito. Falta clareza e segurança", afirma.

Pelo menos dois estados já anunciaram programas com base na emenda. O Rio de Janeiro aprovou uma lei prevendo a possibilidade de utilização desses créditos inclusive com cessão para pagamento de débitos tributários, mas a norma ainda não foi regulamentada.

Emendas constitucionais que adiam o pagamento de precatórios e permitem compensações não são novidade, mas sempre trataram de precatórios dos governos regionais. Uma emenda de 2009 levou governadores e prefeitos a propor esse tipo de encontro de contas.

Estados e municípios também mantêm até hoje programas de compensação com base na emenda constitucional nº 94, de 2016. Ela permitiu o uso de precatório para quitar débitos de qualquer natureza inscritos até 25 de março de 2015 na dívida ativa.

Em todos os casos, foi dada a cada ente a liberdade de definir suas próprias regras. Há diferenças em relação a descontos de multas e juros nas dívidas a serem compensadas, por exemplo. Algumas legislações também limitaram o uso do precatório a um percentual do débito, exigindo pagamento à vista do restante em dinheiro.

Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão de Precatórios da OAB Nacional, cita programas do estado de São Paulo como exemplos daqueles que tiveram adesão reduzida por causa de obstáculos. O Rio de Janeiro, por outro lado, teve algum sucesso nas ações promovidas em 2010 e 2012, que liquidaram 30% do estoque de precatórios na época e exigiam pagamento em dinheiro de apenas 3% da dívida total.

"A gente já sabe mais ou menos a receita que dá certo, mas há várias maneiras de fazer dar errado. Uma delas é criar um monte de restrições, de obstáculos para aderir aos programas. O governo corre o risco de não conseguir sucesso se não ouvir todas as partes envolvidas", afirma Gouvêa.

Ele cita a necessidade de um processo rápido e padronizado de adesão, de maneira a atrair pequenos devedores e afirma que o grande incentivo que o governo pode dar é o desconto de multa e juros na dívida, como faz com o Refis.

Samir Nemer, sócio do FurtadoNemer Advogados, lembra que o precatório é uma invenção brasileira, que permite ao Estado adiar o pagamento aos seus credores, enquanto empresas e pessoas físicas são obrigadas a manter suas obrigações em dia.

Para ele, a aplicação das compensações na esfera federal pode ajudar muitos desses contribuintes a colocar suas contas em dia em um momento de crise.

"Quando você possibilita pagar esses débitos com precatório, todo mundo sai ganhando, o governo e o empresário que está à margem do mercado, passando dificuldade. Quando ele volta a ter suas certidões negativas, pode dar um impulso na empresa, e isso fomenta a economia. No médio prazo, incrementa a arrecadação com a economia sendo aquecida."

O presidente da Comissão de Precatórios da OAB Nacional prevê uma reativação do mercado privado de precatórios, com a demanda puxando para cima o valor dos papéis e as empresas aproveitando o deságio para reduzir o custo em operações de concessão e privatização. Avalia ainda que não haverá perda de receita.

"Não perde arrecadação. O que o governo deixa de pagar [em precatório] é muito mais do que receberia. Foi o caso do Rio. É o que vai acontecer com a União se ela fizer um programa bem feito."

Pedro Siqueira, sócio do Bichara Advogados, também afirma que não há renúncia, mas a compensação de um passivo com um ativo, e que diz que essa é uma forma barata de os entes públicos fomentarem a economia em um momento de crise.

Não há projeções sobre o potencial dessas compensações, mas esse é um mercado com valores bilionários.

O Mapa Anual dos Precatórios do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostra que há quase R$ 200 bilhões pendentes de pagamento em todas as esferas de governo. O calote da União promovido pela PEC acrescentará a esse saldo pelo menos R$ 45 bilhões em 2022.

A dívida ativa da União soma R$ 2,7 trilhões, com 5 milhões de CPFs e CNPJs. São cerca de R$ 1 trilhão com ratings A e B, notas dadas aos débitos com maiores chances de recebimento. A taxa anual de recuperação é de aproximadamente 1% do estoque.

As duas emendas constitucionais (113 e 114/2021) estão sendo questionadas no STF (Supremo Tribunal Federal) pela OAB e associações de magistrados e servidores. Relatora da ação, a ministra Rosa Weber requisitou no final de fevereiro informações à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal e ao presidente da República sobre o tema.

ALTERNATIVAS PARA USAR PRECATÓRIOS APÓS PEC DO CALOTE

O credor pode utilizar precatórios* próprios ou adquiridos de terceiros para:

quitar débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa;

compra de imóveis públicos disponibilizados para venda;

pagamento de outorga de serviço público e demais espécies de concessão;

aquisição de participação societária disponibilizada para venda (privatização);

compra de direitos do ente federativo**

As compensações valem para União, estados e municípios. Cada ente deve estabelecer suas próprias regras. A emenda prevê "auto aplicabilidade" do dispositivo para a União

Em todos os casos, o precatório e a dívida devem ser do mesmo ente federativo

*

R$ 200 bilhões

Estoque nacional de precatórios até 2020

R$ 45 bilhões

Valor que a União não deve pagar em 2022

R$ 2,7 trilhões

Dívida ativa da União

R$ 31,7 bilhões

Recuperação da dívida ativa em 2021

*A emenda trata créditos líquidos e certos reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado.

**No caso da União, inclusive de antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo

Fontes: Emenda Constitucional nº 113/2021, Conselho Nacional de Justiça e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.