RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) vetou a indicação de Nei Lopes, 79, para o título de doutor honoris causa da instituição. O sambista é formado em direito na própria universidade e escreveu mais de 40 livros sobre a cultura afro-brasileira.

A decisão foi da congregação, o órgão deliberativo máximo, da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ -onde Nei se formou. Oito integrantes votaram contra e dez a favor, mas eram necessários 14 votos para o nome ser aprovado. O pedido pode ser revisto.

O título de doutor honoris causa, ou "por causa de honra", é uma titulação universitária concedida a pessoas, com ou sem graduação acadêmica, que atingiram um alto nível de reconhecimento público e destaque em determinada área, como artes, ciências, filosofia, letras, promoção da paz, causas humanitárias.

Nei já recebeu o mesmo título das universidades Rural do Rio de Janeiro, em 2012, e do Rio Grande do Sul, em 2017.

Negro, ele se formou em direito na UFRJ, em 1966, sendo o primeiro da família a chegar ao ensino superior. Há cerca de um mês, foi o principal convidado do evento de comemoração dos 130 anos da Faculdade Nacional de Direito (FND) e discorreu sobre o papel social e político do direito.

Em 1972, no entanto, largou a advocacia para se dedicar à música. Como cantor e compositor, é conhecido pelos sambas antológicos "Senhora Liberdade" e "Coisa da Antiga", dos quais é coautor.

Mas Nei é também escritor e intelectual da cultura africana e afro-brasileira. Tem mais de 40 livros publicados sobre essa temática, como a "Enciclopédia brasileira da diáspora africana", o "Dicionário banto do Brasil" e "Afro-Brasil Reluzente: 100 Personalidades Notáveis do Século XX".

No próximo ano deve ser lançada a biografia do compositor, escrita pelas pesquisadoras Marília Trindade Barboza e Lara Sayão Lobato. Também está sendo produzido um documento sobre a sua trajetória e uma série em dez episódios, intitulada "O Rio Negro de Nei Lopes", do canal Music Box.

No entanto, a professora Ana Lúcia Sabadell, relatora do pedido de titulação de Nei, argumentou em seu parecer que ele apresenta "tímida atuação como advogado" e que "não guarda relação estreita com o campo jurídico". Outros sete docentes concordaram.

Em nota, a faculdade afirmou que a relatora "atuou dentro dos limites específicos da técnica e da legalidade. Não houve emprego de conceito subjetivo ou de cunho pessoal".

O diretor da FND, Carlos Bolonha, disse que não houve qualquer avaliação sobre o mérito e a trajetória profissional de Nei, mas que a professora, conhecida pela defesa dos direitos humanos, nacional e internacionalmente, elaborou o parecer com base no que havia sido disponibilizado no pedido.

"A docente em nenhum momento afirmou que ele não faria jus a um título desta natureza, apenas pontuou questões específicas referentes à Faculdade de Direito, por não atuação nesta área do conhecimento", afirma a nota.

Desde que a decisão foi divulgada, a professora tem sido vítima de linchamento virtual e chegou a ser hospitalizada "em função de aborrecimento face ao vilipêndio sofrido por usuários em redes sociais", afirmou a UFRJ.

A faculdade diz reconhecer que "são inegáveis as contribuições de Nei Lopes e de Oscar Araripe [escritor e pintor, que também teve a indicação ao título negada] à cultura nacional".

Advogados e juristas negros têm criticado a universidade e a decisão pode ser revertida. O Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco), que representa os estudantes, defende a revisão e o requerente do título, o advogado Eloá dos Santos Cruz, entrou com o pedido.

Para Silvio de Almeida, professor da Fundação Getúlio Vargas e presidente do Instituto Luiz Gama, Nei tem "inestimável contribuição para o direito".

"Ao nos apresentar a filosofia africana, Nei Lopes fornece subsídios para uma reflexão crítica acerca de temas cruciais da filosofia do direito", escreveu em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo. "[Nei] logo notou que os muros da faculdade de direito não eram apenas físicos, mas intelectuais. Muros que se erguem para separar o direito da vida real, cheia de sofrimentos e contradições que leis não podem dar conta."

Na página da FDN no Facebook, o ex-aluno e colunista do Instituto Rio Antigo, Rodolfo Amaral da Silva, contestou a justificativa dos docentes, de que a trajetória de Nei "não possuía pertinência temática com a área jurídica".

Na lista de personalidades a quem a universidade concedeu o título desde 1921, a Faculdade de Direito aparece como tendo atribuído a titulação a 13 pessoas -sete fizeram carreira no direito; cinco eram altas autoridades estrangeiras, como presidentes e chanceleres; um foi historiador da Roma Antiga.

"Dos 13, não há uma mulher ou uma pessoa negra. Há uma razão para isso: este tipo de condecoração servia como uma troca de gentilezas entre governos. Ou seja, não há uma 'tradição' da faculdade para a concessão do título, uma diretriz que corrobore a justificativa para a recente recusa da concessão desta titulação a Nei Lopes, um dos mais notáveis alunos que a FND já teve", escreveu.

Segundo Silva, a justificativa revela um desconhecimento da própria academia quanto à natureza da titulação. "E acontece exatamente um dia após a ECA-USP [Faculdade de Comunicação da Universidade de São Paulo] conceder pela primeira vez o título de doutor honoris causa a um negro: Luiz Gama, que teve seu pedido de matrícula negado quando vivo", disse.

Luiz Gama só frequentou as aulas como ouvinte, mas ainda assim conseguiu atuar como rábula (pessoa que advoga sem ser formada em direito) e libertar centenas de escravizados.

"Pensar que Nei Lopes, já vastamente reconhecido, perdeu algo com esta recusa da FND é tão ingênuo quanto pensar que Carolina Maria de Jesus, que neste ano recebeu pelo CFCH e pelo IFCS [faculdades de filosofia e ciências humanas e sociais da UFRJ] a honraria póstuma, é quem ganha com o feito, quando são estas instituições que se engrandecem com a atitude", disse o colunista.