SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nas últimas duas semanas, o brasileiro Jorge Santos, 45, que mora em Cracóvia, atravessou a fronteira da Polônia com a Ucrânia duas vezes para resgatar pessoas que precisavam de carona para escapar da guerra. Uma cena não sai de sua cabeça: o drama das despedidas familiares na estação de trem de Lviv, com mulheres e crianças embarcando nos trens, enquanto maridos, pais e irmãos ficam nas plataformas.

"Isso me abateu demais. As crianças pequenas não querendo se separar dos pais, aquelas despedidas, essas cenas mexeram muito comigo", conta.

O êxodo ucraniano, considerado o mais veloz da Europa em pelo menos três décadas, chegou a 1,7 milhão de refugiados nesta segunda-feira (7), de acordo com dados do Acnur (Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas).

Com os homens de 18 a 60 anos sendo proibidos de deixar o país para ficarem disponíveis para o combate, boa parte desse contingente é formado por mulheres e crianças —estas já somam meio milhão, afirmou a embaixadora americana para a ONU, Linda-Thomas Greenfield.

As Nações Unidas e outras organizações ainda não divulgaram dados demográficos que permitam saber qual é a proporção do gênero feminino entre os refugiados ucranianos. Mas o testemunho de quem está no dia a dia nas fronteiras e em centros de acolhimento é unânime: o fluxo de mulheres é muito maior.

É uma "crise de refugiadas", como definiu um brasileiro que morava na Ucrânia e saiu pela Polônia há nove dias, em entrevista à reportagem. O voluntário Jorge Santos confirma. "São muito mais mulheres na fila. Muitas crianças também, muitas pessoas idosas e alguns homens estrangeiros", conta.

Elas têm tido prioridade nos trens de retirada e nos centros de acolhimento montados nos países vizinhos.

Dados anteriores à invasão russa atual mostram que, desde a anexação da Crimeia pelo governo de Vladimir Putin, em 2014, as mulheres eram dois terços dos deslocados internos na Ucrânia –ou seja, das pessoas que tiveram que deixar suas casas e se mudar para outras regiões dentro do país.

Nesta segunda (7), o Comitê Internacional de Resgate (IRC) divulgou um relatório em que expressa "extrema preocupação com a segurança de mulheres e crianças que foram forçadas a deixar suas casas" na Ucrânia, especialmente com aquelas que viajam sozinhas.

"Em situações de conflitos e deslocamentos, mulheres e meninas enfrentam riscos particulares e desproporcionais –incluindo de exploração, violência e abuso. Com as mulheres e meninas da Ucrânia não será diferente", diz o relatório.

"Como em qualquer situação similar, mulheres podem ser vítimas de violência sexual, e em muitos casos levam crianças com elas, que também ficam muito vulneráveis", afirma à reportagem Milan Votypka, coordenador de mídia da organização humanitária tcheca People in Need, que está atuando com refugiados da crise ucraniana.

Segundo ele, os programas de acolhimento da guerra focam esses grupos vulneráveis.

O porta-voz do Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho, relata que o trabalho de acolhimento e prevenção contra abusos se dirige também aos trabalhadores humanitários que lidam com essas refugiadas. "É algo que não pode ser tolerado. Em uma situação como essa, é preciso ter um olhar muito específico de proteção e prevenção contra a violência de gênero, incluindo exploração sexual."

Em meio a esse contexto, na última sexta (4) vieram à tona áudios enviados a amigos pelo deputado estadual brasileiro Arthur do Val (Podemos-SP), conhecido como Mamãe Falei. Ele, que visitou a Ucrânia na semana passada, diz nas mensagens que as ucranianas são "fáceis" por serem pobres —e que a fila de refugiados da guerra tem mais mulheres bonitas do que a "melhor balada do Brasil".

Ao menos 11 pedidos de cassação já foram protocolados contra o político no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo por causa do episódio.

TRÁFICO DE MULHERES E PARTOS INSEGUROS

Segundo a mídia britânica, já há alertas para o tráfico de mulheres e crianças nas fronteiras da Ucrânia. Uma porta-voz da organização internacional Care afirmou ao jornal The Telegraph que gangues baseadas nos países vizinhos estão "prontas para se aproveitar da crise" na Ucrânia para traficar pessoas pela Europa. Segundo ela, a entidade prevê um "aumento perturbador" de casos nos próximos meses.

Outra reportagem, do jornal Daily Mail, afirma que a polícia polonesa tem pedido a trabalhadores humanitários na fronteira que chequem as identidades de quem oferece carona para as refugiadas, já que criminosos de redes de tráfico sexual muitas vezes se disfarçam de bons samaritanos, com promessas de transporte e acomodação gratuita.

O governo ucraniano denunciou também o suposto uso da violência sexual como arma de guerra, muito comum em conflitos, por militares russos.

"Quando bombas caem em suas cidades, quando soldados estupram mulheres nas cidades ocupadas —e temos muitos casos, infelizmente, quando soldados russos estupram mulheres em cidades ucranianas— é difícil, é claro, falar sobre a eficiência do direito internacional", afirmou o ministro das Relações Exteriores, Dmitro Kuleba, em um evento na sexta-feira na Chatham House, em Londres.

O chanceler não deu nenhuma evidência para a afirmação, e agências de notícias como a Reuters não conseguiram verificar a alegação de forma independente.

A saúde das gestantes também é uma preocupação no conflito ucraniano. Estima-se que 80 mil mulheres devem dar à luz nos próximos três meses no país –muitas delas não terão acesso a cuidados médicos. "Para algumas, o parto será um risco de vida, em vez de uma experiência transformadora", diz um relatório do Unfpa (Fundo de População das Nações Unidas).

Fotografias de bebês que nasceram no metrô de Kiev, usado como abrigo antibombas nos últimos dias, têm viralizado na internet.

No último dia 3, a maternidade privada Adonis foi atacada nos arredores de Kiev. As pacientes e seus bebês, que já estavam havia dois dias escondidos no porão da clínica, foram levados para outro local em ônibus, quando se soube da aproximação de tanques russos. Todos acabaram salvos.