SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ainda que a Rússia seja conhecida por seu aparelho estatal de desinformação, a guerra na Ucrânia tem visto o outro lado do conflito também se utilizar de informações falsas para tentar comover a opinião pública.

Autoridades ucranianas, incluindo o presidente Volodimir Zelenski, já falaram sobre o "fantasma de Kiev", caça ucraniano que supostamente derrubava aeronaves russas, mas que na verdade era um simulador de videogame; o risco de um incêndio na usina de Zaporíjia ser pior que o acidente de Tchernóbil, desmentido por cientistas; e a destruição do monumento de Babi Yar, desmentido pela direção da entidade.

Em todos os casos, explica Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra, a desinformação é usada para tentar atrapalhar o adversário e comover o público -seja para aumentar o moral nacional ou sensibilizar o mundo em seu favor.

Como lembra a máxima de que num conflito a primeira vítima é a verdade, a tática não é nova. "É difícil abordar essas histórias sem parecer que estamos falando de teorias da conspiração, mas na verdade são questões de inteligência", diz.

Ela aponta para uma evolução nos meios por onde as mentiras de guerra se propagam. Primeiro, os jornais, depois o rádio, então a TV nas guerras do Golfo e do Vietnã e agora, na Ucrânia, as redes sociais. A desinformação oxigenada pelos líderes envolvidos na guerra circula com a ajuda de milhares de grupos e usuários na internet. Uma novidade contemporânea, porém, são as agências de checagem.

Logo no primeiro dia de guerra, profissionais de 69 países que integram a Rede Internacional de Checagem de Notícias (IFCN, na sigla em inglês), consolidaram a #UkraineFacts, plataforma de verificações sobre a invasão russa. Até a noite de segunda-feira (14), 1.543 verificações tinham sido feitas pelo grupo. Ou seja: a cada dia, 79 desinformações foram localizadas e desmentidas.

Como comparação, no início da pandemia da Covid, checadores de 110 países montaram colaboração semelhante para monitorar a crise sanitária. Foram 547 checagens nos primeiros 19 dias -média diária de 29.

Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa e ex-diretora adjunta da IFCN, diz que duas características da onda de desinformação da guerra na Ucrânia já estão evidentes. Primeiro, o que descreve como "guerra imagética" -das 1.543 checagens, 1.366 envolviam materiais audiovisuais. Segundo, o fato de que grande parte do conteúdo é verdadeira, mas colocada fora de contexto, tornando-se, portanto, desinformação.

"Essa é uma arma de guerra, e todos os lados vão lançar mão dela", diz Tardáguila. "O difícil é entender o dolo em cada caso -quando a intenção real foi mentir ou quando não foi possível obter informação precisa. É difícil estar seguro de um fato no meio de um bombardeio, e supor que um dos lados seja dono da verdade seria ingênuo."

Completa Kalil: "Não importa [se há a intenção ou não de mentir], porque uma pessoa é levada a acreditar que um fato é importante e viável. Se uma pessoa postou e outra acreditou que é verossímil, o estrago está feito". Lembre abaixo algumas afirmações dos ucranianos que não se comprovaram.



COMBOIO ATACADO EM CORREDOR HUMANITÁRIO

No último dia 12, o serviço de inteligência da Ucrânia afirmou que o exército russo havia atacado um comboio que saía da zona de conflito, matando sete civis, incluindo uma criança -e desrespeitando um cessar-fogo.

O Ministério da Defesa ucraniano corrigiu: as pessoas, na verdade, estavam "fora dos 'corredores verdes' acordados entre os dois lados [da guerra]". O texto publicado pela Inteligência da Ucrânia no Facebook não foi apagado e a rede social não adicionou nenhum tipo de aviso de desinformação.

Ataque a mesquita

Os próprios russos concordam que a situação em Mariupol é uma tragédia humanitária. No entanto, apesar dos bombardeios na cidade e seus arredores, não é verdade que a mesquita do sultão Soliman tenha sido atacada.

A afirmação foi feita pelo Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, que disse nas redes sociais que "mais de 80 adultos e crianças" estariam dentro do prédio. Zelenski ecoou a acusação.

Mais tarde, o líder do templo, Ismail Hacioglu, negou que o local houvesse sido atingido. Um dos envolvidos nas operações de saída também desmentiu a declaração do ministério. A postagem do órgão segue no ar.

DESTRUIÇÃO DE BABI YAR

"Qual o sentido de dizer '[nazismo] nunca mais' se o mundo fica em silêncio quando uma bomba cai no mesmo local de Babi Yar? É a história se repetindo", afirmou Zelenski quando acusou um bombardeio russo de ter atingido o monumento Babi Yar.

A afirmação comoveu entidades e o governo de Israel, que condenaram o que lembraria os tempos do Holocausto -no local, o regime de Adolf Hitler matou matou mais de 30 mil judeus em dois dias, em 1941.

Depois, Ruslan Kavatsiuk, um dos diretores do Memorial Babi Yar, afirmou que os danos se deram, na verdade, em um edifício que a instituição pretendia usar como museu, mas que não houve prejuízo ao memorial em si.

A postagem de Zelenski no Twitter foi curtida por mais de 300 mil pessoas e compartilhada mais de 75 mil vezes -e segue sem aviso sobre desinformação.

ZAPORÍJIA MAIOR QUE CHERNÓBIL

Um dos pontos de maior tensão da guerra até aqui foi quando o exército de Putin invadiu e tomou a maior usina da Europa, Zaporíjia. A troca de tiros, o incêndio e as explosões foram transmitidas ao vivo, e logo o medo de um desastre nuclear tomou conta das redes sociais.

O primeiro-ministro da Ucrânia, Dmitro Kuleba, implorou para que os russos parassem o ataque. Segundo ele, se a usina explodisse o dano seria "dez vezes maior que Tchernóbil", usina palco do maior acidente nuclear da história. Tão logo a postagem do chanceler ganhou destaque, especialistas o desmentiram.

Os reatores das instalações, por exemplo, são diferentes: o de Zaporíjia não usa grafite, elemento que causou a explosão em Tchernobil. Mark Wenman, do Imprerial College de Londres, afirmou à BBC que a estrutura de Zaporíjia pode "aguentar eventos externos extremos, como a queda de um avião ou explosões".

Depois se soube que o incêndio na verdade aconteceu no prédio de treinamento da usina, e a Agência Internacional de Energia Atômica, ligada à ONU, afirmou que não houve mudança nos níveis de radiação do local. A postagem de Kuleba continua no ar.

O FANTASMA DE KIEV

O "fantasma de Kiev" começou com um vídeo que viralizou e foi compartilhado pelo Ministério da Defesa ucraniano e no grupo de Telegram do Serviço de Segurança do país, com mais de 700 mil pessoas.

Até o ex-presidente da Ucrânia Petro Poroshenko compartilhou o que seria a foto do que então havia sido alçado ao status de herói nacional: um caça ucraniano que aterrorizava (e derrubava) unidades da poderosa Força Aérea de Putin.

O problema é que o "primeiro ace [ponto de saque, no tênis] desde a Segunda Guerra" era, na verdade, um mito. O jornal americano The New York Times rastreou a origem das imagens para o vídeo de um simulador, o DSC World, publicado no YouTube em um canal com 3.000 assinantes.

A postagem do Ministério da Defesa ganhou o status de "fora do contexto" no Twitter, mas já passou das 80 mil curtidas e tem mais de 1,6 milhão de visualizações.

SOLDADOS QUE NÃO MORRERAM

Um dos primeiros conflitos da guerra se deu na ilha da Cobra, no mar Negro, no qual 137 civis e militares teriam sido mortos pelas tropas de Moscou.

O jornal ucraniano Pravda publicou um áudio que revelaria guardas-costeiros ucranianos recebendo um ultimato: se não se rendessem, seriam assassinados. Foram mais de 3,5 milhões de visualizações do material, que teve a autenticidade confirmado por autoridades do país.

Zelenski lembrou os guardas que morreram "heroicamente, mas não desistiram" e disse que os condecoraria com o título de heróis nacionais.

Dois dias depois, as autoridades ucranianas fizeram uma postagem afirmando que os homens, na verdade, estavam "vivos e bem", que haviam sido capturados e que a "propaganda russa" estaria tentando promover uma narrativa mentirosa.