Tecnologia pode promover o pior regime totalitário da história, diz Yuval Harari
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quarta-feira, 10 de novembro de 2021
HENRIQUE ARTUNI
CAMPINAS, SP (FOLHAPRESS) - Um dos primeiros best-sellers da história, o "Malleus Maleficarum", ou martelo das feiticeiras, publicado em 1487, foi um manual que impulsionou as perseguições da Inquisição. Longe de ser um tratado científico, este trabalho é classificado pelo professor israelense Yuval Noah Harari, hoje, como uma "teoria da conspiração" e como uma prova de que as fake news não são novidade.
De lá para cá, "Sapiens: Uma Breve História da Humanidade", no qual Harari esmiúça a evolução da espécie humana em uma linguagem acessível, vendeu mais de 35 milhões de cópias pelo mundo, ganhou versão em quadrinhos e completa dez anos em 2021. Ainda assim, a desinformação segue presente e trazendo malefícios.
Mas fake news e propaganda já foram bem piores no passado, da Idade Média aos nazistas e comunistas, argumentou Harari em conferência do Fronteiras do Pensamento, nesta quarta-feira, entrevistado por Ronaldo Lemos, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
"As big techs são uma ameaça [pela difusão de fake news], mas criar um novo meio de comunicação não nos traz mais verdade. A novidade é que, pela primeira vez na história, é possível seguir todo mundo todo tempo e saber mais das pessoas do que sabemos sobre nós mesmos", diz Harari, sobre esse que seria o maior sonho dos grandes autocratas da história.
"Se [nossos dados pessoais] caírem nas mãos erradas, de um Stálin do século 21, teremos o pior regime totalitário da história", alerta o professor, que também escreveu "Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã", em que tenta entender nossa espécie hoje e quais as possibilidades de futuro.
Enquanto o professor acredita que a humanidade tem a tecnologia para fazer da Covid-19 a última pandemia da história, não há sabedoria política para isso. Sua avaliação é de que esta crise sanitária foi "como assistir a um acidente de trem em 'slow motion'". "Ninguém tomou as rédeas, parece que foi um desastre descontrolado."
Segundo ele, a falta de cooperação e de um plano global para combater o vírus só alerta para os perigos ainda maiores, como o aquecimento global. "A Covid-19 não pode nos destruir, ela é terrível, mas a humanidade sobreviverá. Com as mudanças climáticas não será assim. Elas vão destruir a civilização humana, e o perigo é o mesmo se deixarmos a inteligência artificial sair do controle", afirma.
O professor, que leciona no departamento de história da Universidade Hebraica de Jerusalém, acredita que o próximo evento catastrófico global vai envolver um enorme ataque cibernético que derrube grande parte da infraestrutura digital do mundo. "E pode ser bem pior do que o vírus, pois a Covid-19 nos permitiu recuar para o mundo digital. Se a internet cair por uma semana, ou mesmo um mês, seria um caos completo", aponta. "Espero que os governantes estejam se preparando melhor para isso do que eles se prepararam para a pandemia."
Em paralelo, Harari vê o fenômeno dos metaversos --isto é, universos virtuais, que estão sendo cotados como o futuro da internet-- como um caminho natural da humanidade, imitando o que religiões teriam feito nos últimos séculos. Caminhamos ainda, segundo ele, para um ponto de virada, onde poderemos usar a tecnologia para mudar nossos corpos, criar novas entidades e mesmo seres completamente inorgânicos. "É algo que nem dá para imaginar, até nossa imaginação é orgânica", diz.
Se o assunto parece muito afastado da realidade, basta notar como o conceito de animismo --que entende que mesmo objetos inanimados possuem algum tipo de espírito-- se expandiu recentemente para vários dispositivos ao nosso redor. Afinal, inteligências artificias já são capazes de coletar dados para conhecer até mesmo a emoção das pessoas.
"Podemos chegar a um ponto em que esses aparelhos, desde uma televisão até uma geladeira, nos entendam melhor que nossos familiares", conta, lembrando que nós mesmos pagamos pelas tecnologias que nos vigiam sem interrupção e aos poucos também vão tomando o lugar dos humanos no mercado de trabalho.
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