SPFW tem passarelas invadidas pelo Brasil real que vive nos bares e botequins
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sexta-feira, 19 de novembro de 2021
PEDRO DINIZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nem só de elucubrações sobre a moda pós-pandêmica é feita esta São Paulo Fashion Week. O brilho da festa, o contato físico e a montação pop que pareciam esquecidos em meio às notas sobre o desânimo voltaram ao centro da passarela nos últimos dois dias.
Weider Silveiro poderia afiar a agulha para costurar a languidez helênica exibida em sua última temporada, que, aliás, funcionaria melhor na passarela física do que na virtual passada, mas trocou a fita K7 e mergulhou em acordes de guitarra para emular uma versão do punk.
Um punk adocicado, vale dizer, um tanto baseado no filme "As Patricinhas de Beverly Hills", com muito rosa, branco e minissaias combinadas à alfaiataria que é a cara da virada dos anos 1990 para os 2000, um molho que tomou as ruas nessa virada de chave pós-isolamento.
O estilista investiu numa festa contida, ainda que nada entediante. Mesmo os florais, parte quase irrelevante no conjunto proposto, não ofuscavam a boa ideia de vincular sua tesoura técnica a uma corrente de cortes menos rígidos.
Logo depois, nos últimos closes da noite de quinta-feira (18), o pernambucano Walério Araújo promoveu um verdadeiro expurgo da monotonia dos pijamas pandêmicos.
A performance de estrelas da noite, da drag Halessia ao DJ Johnny Luxo, ícone da noite clubber paulistana, homenagearam o estroboscópio ilustrado nesta Ilustrada, especificamente na coluna "Noite Ilustrada", da ex-colunista Erika Palomino.
O fervor hedonista que transitava em suas páginas borrifou estruturas espelhadas, make pesada e muita pele aparente como uma fotografia analógica daquele tempo de sons e vocabulários próprios.
A ideia era uma "volta por cima", como se lia na parte de trás de uma jaqueta de couro, de todo o marasmo e especulação imobiliária que varre os miolos convulsivos de São Paulo, como a rua Augusta e as ruelas da região central.
Mas a grande festa foi reservada para a tarde desta sexta-feira (19), quando a Misci estreou na passarela física com uma coleção que coroou a estética notívaga fora do eixo Rio-São Paulo.
O desfile Fuxico Lanches conduzido pelo estilista Airon Martin, talvez a melhor surpresa que o calendário de novidades da SPFW trouxe nos últimos dois anos, conseguiu juntar num mesmo espaço Sasha Meneghel, música brega, minimalismo e referências ao que há de mais autêntico no design brasileiro pouco valorizado.
Das cadeiras de plástico empilhadas na passarela, Airon tirou a estrutura arredondada do encosto para cortar as barras dos vestidos, dos tops e de algumas saias fendadas com rigor matemático.
A alfaiataria é um dos nortes criativos desse estilista fã de Lina Bo Bardi, de quem tirou as telas do mobiliário, as linhas modernas de suas criações e o apreço pelo monocromatismo pulsante. Mas, diferentemente de quem tenta usar os ídolos como raio intelectualizante de ideias capengas, ele abraça o discurso da arquiteta de olhar para o Brasil de dentro.
E, hoje, ele é feito de muita maionese temperada em sanduíche, que aparece em um dos desenhos do artista pernambucano Gabriel Azevedo, compositor da identidade visual e das ilustrações que ainda mesclam batata frita e refrigerante esmaecidos em bases lisas.
Os fuxicos próprios ao artesanato nordestino, apareciam em detalhes sutis, como numa faixa combinada a saia e, tingidos de dourado, fazendo as vezes de botões delicados.
Pedaços de tecido em formato de babadores foram costurados nas cinturas e nos ombros, adicionando a esse caldo de feijão com coentro a misoginia intrincada nessas festas, nas quais, o estilista afirma, "os homens são todos babões".
Uma plateia inebriada pelos versos do brega raiz ainda ouvia a versão de Calcinha Preta para o hino "Milk Shake", cantando envergonhada, mas visivelmente emocionada, que "hoje eu sou sua laranja, sinto o gosto da maça", enquanto via as potências têxteis nacionais entrarem em cena.
Sapatos e paletós adornados com a seda rústica de Maringá, de onde partem os casulos da grife Hermès, e o algodão orgânico colorido plantado nos assentamentos gerenciados pela marca Natural Cotton Color, no interior da Paraíba, resumiam o quão nobre a moda brasileira poderia ser se decidisse sair das paredes das galerias de arte. E, quem sabe, entrasse no ritmo do passo agarrado na cintura, sempre marcada, claro, dos botequins brasileiros.