SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pela primeira vez, um planeta que não a Terra tem sua estrutura interna sondada a partir do registro de abalos sísmicos. O alvo é Marte, e o sucesso é da sonda InSight, da Nasa, que chegou ao planeta vermelho em novembro de 2018.

O módulo de pouso usou um braço robótico para instalar um sismômetro na superfície de Marte. Foi a segunda tentativa de detectar "martemotos", apelido dado aos terremotos marcianos. A primeira foi com as sondas Viking, nos anos 1970, mas terminou malfadada porque, numa, a exposição do instrumento falhou e, na segunda, a sensibilidade se mostrou insuficiente para identificar eventos sísmicos.

Tudo que se concluiu então era que Marte era menos ativo sismicamente do que a Terra, no que talvez tenha sido o mais decepcionante dos resultados daquelas sondas.

Com a InSight, décadas depois, a Nasa voltou ao desafio. O sismômetro Seis (sigla inglesa para Experimento Sísmico para a Estrutura Interna), desenvolvido no Instituto de Física Terrestre de Paris, seria instalado por um braço robótico na superfície de Marte e protegido por uma capa, reduzindo o impacto de vibrações da atmosfera nas medições.

As operações começaram em fevereiro de 2019. Desde então, ele vem colhendo dados. Ainda há muito "ruído" produzido por vibrações da atmosfera, mas os pesquisadores puderam detectar os primeiros martemotos.

Como as Vikings já sugeriam, Marte é bem mais tranquilo sismicamente que a Terra. Há número significativo de abalos sísmicos, em geral bastante modestos. Nenhum dos já detectados ultrapassou magnitude 4 na escala Richter e, se houvesse alguém por lá, só seria capaz de sentir o chão tremer se estivesse a poucos quilômetros do epicentro.

Terremotos são excelentes para identificar a estrutura interna de um mundo. Isso porque é impossível viajar até o centro de um planeta, mas as ondas de choque dos tremores chegam com menos dificuldade. E mais importante: conforme passam por regiões com propriedades diferentes, sofrem mudanças de velocidade e frequência. Assim, os cientistas usam as ondas sísmicas para construir uma "radiografia" (note as aspas, nada a ver com raios X) do planeta.

Aqui na Terra, pode-se fazer isso com muitos sismômetros pelo mundo, que nos permitem não só uma excelente noção de como é nosso planeta por dentro como viabilizar aplicações práticas importantes, como compreensão da distribuição dos terremotos pelo globo e a geração de alertas de tsunami.

Em Marte, por ora, o trabalho é feito só com um equipamento, o que torna o desafio mais complexo, e as incertezas, maiores. Ainda assim, dá para aprender um bocado, como demonstram três artigos científicos publicados esta semana na revista Science.

"Esses estudos fornecem as primeiras observações diretas da estrutura de crosta, manto e núcleo de outro planeta rochoso, resultados e implicações que podem ser comparados e contrastados com as características da Terra", dizem Sanne Cottaar e Paula Koelemeijer, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, ao comentar os resultados na mesma edição da Science.

Um dos trabalhos, que tem como primeiro autor Simon Stähler, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, se concentrou na investigação do núcleo marciano, baseado em ondas sísmicas que viajaram até lá, foram rebatidas e chegaram ao sismômetro da InSight.

Os pesquisadores determinaram que Marte tem um núcleo metálico de ferro-níquel líquido, como a Terra, mas proporcionalmente bem maior. Com raio de cerca de 1.830 km, vai até praticamente o meio do caminho até a superfície (Marte tem um raio de 3.390 km). Em compensação, apesar do tamanho, é bem menos denso que o terrestre, o que faz os pesquisadores sugerirem que deve haver uma proporção relativamente maior de elementos mais leves, como enxofre.

São peças importantes do quebra-cabeça que tenta entender por que o planeta vermelho perdeu seu campo magnético global. Sabe-se, por magnetização em rochas da superfície, que Marte já teve um, e o núcleo, como o terrestre, já agiu como um dínamo, produzindo uma magnetosfera protetora. Mas atualmente ele está "desligado".

O segundo artigo, que tem como primeiro autor Amir Khan, também do IFT de Zurique, se concentrou nas ondas sísmicas que poderiam revelar detalhes sobre o manto de Marte. Em vez de rebaterem no núcleo, viajaram do epicentro dos martemotos até o sismômetro, e os pesquisadores determinaram que elas sofrem redução gradual de velocidade entre 400 e 600 km de profundidade, revelando possível divisa entre a litosfera (camada superior) e o manto (onde há convecção de material, movendo-se, parece, de forma bastante arrastada).

O terceiro estudo, de Brigitte Knapmeyer-Endrun, da Universidade de Colônia, na Alemanha, se concentrou na investigação da crosta, parte superior da litosfera. Nele, os dados apuraram dois modelos, um indicando profundidade da crosta de 20 km, e outro, 39 km. Extrapolando, estima-se que a crosta marciana tenha de 24 km a 72 km de profundidade.

E mais: a modelagem parece sugerir que a crosta deve ser 13 a 21 vezes mais enriquecida em elementos radioativos geradores de calor que o manto, estimativa bem maior do que a baseada em medições de materiais da superfície. (Infelizmente, a InSight não conseguiu instalar seu termômetro em Marte, o que ajudaria a obter melhor avaliação).

A missão InSight foi estendida até 2022, e "o número de observações de alta qualidade deve dobrar, criando oportunidades para adicionar detalhes e aprimorar os modelos de Marte", dizem Cottaar e Koelemeijer.