SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A digitadora Neves Linares Garcia, então com 19 anos, beliscava um pãozinho escondido debaixo de sua escrivaninha, no 22º andar do Andraus, na região central de São Paulo, quando percebeu algo diferente passando pela janela.

"Eram 16h15. Olhei para fora e vi, assim, aquela fumaça preta, todinha. Eu falei: 'Meu Deus, o que está acontecendo?", conta ela, lembrando o início de um drama vivido há 50 anos como testemunha de um dos famosos incêndios do país ocorrido em prédio comercial na avenida São João.

Neves, então estudante secundarista, fiscalizava os ponteiros do relógio porque tinha aula naquela noite, em um prédio a cerca de 10 quilômetros de distância, na escola estadual Gualter da Silva, no Moinho Velho, na zona sul.

"Quando olhei para o escritório todo, vi o pessoal se movimentando, já querendo sair. Então, logo imaginei que fosse o nosso prédio que estivesse pegando fogo", disse ela.

Com o desespero instalado, Neves correu para o armário para pegar a bolsa e acompanhar o fluxo de funcionários que seguiam para as escadas. As portas dos elevadores chegaram a se abrir quando ela passava por eles, mas, por instinto, pensou melhor não arriscar. Teria morrido.

Na correria, ela deu frente com o superior direto dela, o diretor-financeiro da Henkler do Brasil, Ottmar Flick. O chefe estava deixando o andar com um ar de desespero, conta, mas o homem decidiu voltar para a própria sala, talvez para arrancar as cortinas, como calculam os colegas.

"Nunca mais voltou", disse ela, sabendo depois que aquele diretor "simpático, educado e agradável" havia se tornado uma das 16 vítimas do incêndio, que também deixou 300 feridos. "Eu vejo direitinho a imagem dele, desesperado, assim, voltando. Engraçado, isso não se apaga. Nem do outro chefe", disse.

O outro chefe citado por ela era o diretor-presidente Paul Jürgen Pondorf, que chegou a subir com os funcionários pela escada, ao lado de Neves. Era aquele homem, de origem alemã, que despertava certo temor nos funcionários e cuja vigilância levou Neves a comer o pãozinho escondido.

"Ficamos nas escadas, porque para descer não dava. Havia muita gente subindo, de outros escritórios. Ele [Pondorf] ficou do nosso lado nas escadarias, mas não teve paciência de esperar e se jogou", afirmou ela, hoje comerciante de sapatos.

"Ele jogou primeiro a mala de couro, depois desatarraxou a gravata, colocou uma perna para o lado de fora da vidraça e se jogou. Não conversou com ninguém. Nem mesmo nessa hora. Não olhou para ninguém. Não falou um 'A'", lembra ela.

O incêndio teve início no terceiro andar do prédio da loja Pirani (poderosa rede de eletrodomésticos da época), que ocupava cinco andares do Andraus. A principal suspeita é que o fogo tenha começado com um curto-circuito no luminoso externo da loja.

Nas escadarias, conta ela, os funcionários ficaram presos por cerca de uma hora, até que alguns homens conseguissem abrir o alçapão que dava acesso ao heliporto no topo do prédio de 27 andares. "Fomos subindo com muito sacrifício, havia muita gente, muita fumaça, muito calor. As labaredas vinham na janela, estouravam os vidros da janela, terrível", disse.

No topo Andraus, calcula ela, ficou esperando por cerca de uma hora até o resgate aéreo. "Vi as labaredas muito altas. Eu queria sair dali muito rápido, porque pensava assim: 'Esse prédio vai cair'. Meu medo era que tudo aquilo desmoronasse", disse.

Neves acredita ter sido salva no terceiro helicóptero. E, conforme diz, no desespero não percebeu que entre os bombeiros que ajudavam as vítimas a embarcar nos helicópteros estava o sargento Augusto Carlos Cassaniga, então com 31 anos.

Além de Cassaniga, outros cinco bombeiros foram levados ao topo do Andraus, com apoio de helicópteros de empresas privadas. "Chegando lá, vi centenas de pessoas apavoradas ali, no heliponto, correndo de um lado para outro. Quando o helicóptero tentou pousar, eles correram para o helicóptero. Um perigo, por conta das hélices."

Cassaniga disse que algumas pessoas chegaram a se agarrar ao esqui do helicóptero, para tentar fugir do prédio. "Tinha que puxá-los. O povo queria invadir o helicóptero para sair, a aeronave era pequena."

Depois de atuar nesse embarque, o então sargento seguiu, com ajuda de colegas, às escadarias do Andraus para ajudar as pessoas a chegar ao heliponto. "Porque eles iriam morrer ali nas escadarias se não houvesse o resgate. Na época, não tinha porta corta fogo, não tinha nada."

A escriturária Vita Aguiar de Oliveira, 69, não se lembra do rosto do bombeiro que a salvou. Na época tinha 18 anos, estava em seu primeiro emprego como auxiliar-administrativa na companhia de seguros Novo Mundo, que, conforme se lembra, ficava no 8º andar do Andraus.

Vita não tem muita precisão de horários. Conta que já havia trabalhado um pouco depois do almoço quando sentiu um forte cheiro de fumaça. "Um dos coordenadores do trabalho foi, então, até janela, toda de vidro, para olhar. Aí, ele falou: 'nossa, está pegando fogo'.

Os funcionários decidiram, então, seguir para escada. "Os homens pegaram o hidrante, começaram a jogar água na gente, para aliviar um pouco o calor e fumaça. Estava calor, mas tinha muita fumaça."

Tempo depois, segundo conta, chegou a informação, não se sabe como, de que os bombeiros estavam iniciando o resgate pelo heliponto e por uma janela que fazia ligação com um prédio vizinho.

Como estava muito cansada para subir ao topo do prédio, decidiu entrar em uma fila que dava acesso à escada de madeira colocada pelos bombeiros entre os dois prédios. "Não tinha condição de subir [para o telhado] porque estava muito cansada", disse.

"Fui arrastando pela escada [de madeira, entre os dois prédios]. Fui passar, meu cabeço embaraçou, minha bolsa. Então, tive que parar no meio da escada. Aí, o bombeiro disse: 'deixa bolsa, deixe tudo'. Mas, eu pensava comigo: 'nossa, é tão complicado tirar documentos. Eu não vou largar não", ri ela ao se lembrar dos pensamentos naquele momento de desespero, 50 anos depois da tragédia no Andraus.

Para o porta-voz do Corpo de Bombeiro de São Paulo, Marcos Palumbo, o incêndio do Andraus foi o precursor das primeiras normas de segurança contra incêndio no estado, que entrou em vigor em 1983. "Demorou quase dez anos para que gente pudesse ter uma legislação que alterasse as condições de segurança das edificações. Os procedimentos, normais que não existiam", afirmou ele.

Ainda segundo ele, essas normas e suas atualizações ajudaram a mudar o perfil dos atendimentos feitos pelos bombeiros de São Paulo. Na época, 75% das ocorrências eram para atendimento de incêndios e, agora, elas não passam de 7%. "Infelizmente, o Andraus foi um precursor negativo na época. Mas, foi muito positivo depois para a diminuição do número de ocorrências."