SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A Rússia instaurou a censura militar na prática à imprensa operando no país. A Duma (Câmara baixa do Parlamento) aprovou nesta sexta (4) lei prevendo até 15 anos de prisão a jornalistas que divulgarem o que o governo considerar fake news sobre a guerra na Ucrânia.

A lei agora precisa ser ratificada pelo Conselho da Federação, equivalente ao Senado, e enviada para o presidente Vladimir Putin sancionar -o que é certo que ocorrerá. Mas seus efeitos já são vistos.

A rede britânica BBC, que havia tido o acesso a seu site restrito pelo governo russo pela cobertura crítica do conflito, anunciou que vai suspender sua operação na Rússia devido ao risco de prisão de seus profissionais.

"A segurança do pessoal está acima de tudo e não estamos preparados para expô-los ao risco de ação criminal só por fazerem o seu trabalho. Nosso jornalistas na Ucrânia e em todo o mundo continuarão a reportar a invasão", afirmou em comunicado Tim Davie, o diretor-geral da rede.

O jornal independente Novaia Gazeta (novo jornal), editado pelo co-ganhador do Nobel da Paz de 2021 Dmitri Muratov, publicou em suas redes que iria retirar todo o conteúdo relacionado à ação de Putin.

"A censura militar na Rússia evoluiu para a ameaça de processo criminal contra jornalistas e cidadãos que divulgam informações sobre as hostilidades que difiram dos comunicados de imprensa do Ministério da Defesa. Portanto, removeremos materiais sobre este tópico", diz o texto.

É uma situação inédita para a era das notícias instantâneas e interconectadas em que vivemos, mas nem de longe algo incomum para um país em guerra. Todos os conflitos desde que a imprensa passou a cobri-los, a partir da Guerra da Crimeia perdida pelos russos em 1856, foram objeto de censuras de governos.

Isso independentemente da coloração dos regimes que a aplicam. Com o estouro da Primeira Guerra Mundial, em 1914, alguém que espalhasse as fake news da época poderia pegar até prisão perpétua no mais democrático Reino Unido, entre outras sanções, quanto na autocrática Alemanha imperial.

Na Segunda Guerra Mundial, uma das primeiras medidas depois que o ataque japonês a Pearl Harbor jogou os Estados Unidos no conflito, em 1941, foi o estabelecimento do Escritório de Censura. Aqui, contudo, a imprensa de forma geral se regulou sozinha e em consonância com o governo, sem atritos que vemos agora na Rússia.

Os exemplos se espalham pelo mundo. A novidade em questão é que existe um resto de mídia crítica ao Kremlin na Rússia e que estamos em 2022, com uma geração de consumidores acostumados ao acesso ilimitado ao que desejam, seja de boa ou má qualidade, por meio das telas de seus celulares.

Debate acadêmico à parte, a vida dos jornalistas russos está bastante complicada. A Folha voltou a falar com Ivan, nome fictício, que trabalhou para veículos como a Novaia Gazeta. Há dois dias, ele dizia estar apavorado com a perspectiva de a lei ser aprovada. Agora, afirma que vai deixar o país.

O torniquete do Kremlin vem sendo apertado ao longo das duas décadas de poder de Putin. Em seu primeiro mandato na Presidência (2000-04), ele tratou de controlar aos poucos as TVs abertas, maior fonte de informação do russo médio.

Dali em diante, foi restringindo o trabalho dos jornais impressos, que foram abandonando linhas editoriais independentes ao longo dos anos. Mesmo a Novaia Gazeta só garantia a sua pelos bons contatos de Muratov na elite putinista, que o tinham como um verniz de liberdade intelectual no sistema.

A partir de 2012, após as primeiras grandes manifestações por mais uma eleição de Putin, uma lei criou a figura do agente estrangeiro para identificar veículos, ONGs e pessoas com financiamento externo. Elas passaram a ser sujeitas a um regime draconiano de fiscalização tributária que na prática impediu muitas de trabalhar.

A guerra finalizou o processo. Primeiro, a agência reguladora de comunicações russa determinou que a guerra deveria ser chamada só de operação militar especial, não pelo seu nome ou variantes como invasão ou agressão. Isso tirou do ar a tradicional rádio Eco de Moscou, que fechou depois as portas, e a TV Chuva, que suspendeu operações.

Todos deverão voltar de uma forma, ou de outra, em encarnações virtuais na internet fora da Rússia. Mas a degradação do acesso a sites, algo que Moscou faz muito bem, parece garantir que elas fiquem fora do "mainstream" do país ao menos durante o conflito.

"A partir de amanhã, a lei vai forçar uma punição muito dura sobre aqueles que mentem e fazem declarações que desacreditam nossas Forças Armadas", disse o presidente da Duma, Viacheslav Volodin. Além das fake news oficiais, também são proibidos comentários pedindo mais sanções econômicas à Rússia.

Ainda é incerto o impacto disso no movimento que se formava contra a guerra, unindo diversas celebridades e intelectuais do país. Nas ruas, o ritmo segue o mesmo: os poucos que vão desafiar a proibição de manifestações sem autorização prévia acabam detidos, por algumas horas, pela polícia.

Já foram, desde o começo do conflito, 8.237 pessoas segundo a ONG OVD-Info, ela mesma uma agente estrangeira na visão do Kremlin.