SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Eleitores de toda a Rússia e de Hong Kong irão às urnas neste fim de semana pela primeira vez desde que Moscou e Pequim promoveram o esmagamento da oposição nos respectivos territórios.

Será um teste interessante para Vladimir Putin, um presidente autocrático que paradoxalmente precisa do apoio popular para manter seu esquema de poder, e para Xi Jinping, cada vez mais consolidado como o mais poderoso líder da ditadura comunista desde Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.

Eles lideram países que são considerados pelos Estados Unidos, a maior potência do mundo, como rivais. O presidente Joe Biden não economizou palavras: a ascendente China é a grande rival estratégica americana, e os russos seguem como um perigoso ator político e militar.

E tanto Putin quanto Xi foram desafiados internamente nos últimos anos. Na Rússia, voltou a ganhar tração o movimento contrário ao Kremlin, embora sem organização eleitoral ou partidária. Já a China viu Hong Kong explodir como um caldeirão pró-democracia em 2019.

As respostas foram duras. Os chineses promoveram a virtual esterilização da oposição a Pequim no território que receberam de volta dos britânicos, implementando uma Lei de Segurança Nacional que acabou com a autonomia presumida do local.

Já os russos viram o principal símbolo da oposição, Alexei Navalni, ser envenenado e, depois de voltar de tratamento na Alemanha, ser preso e condenado por violar uma condicional ao deixar o país em coma.

A China não tergiversou sobre suas ações: apoiados pelos EUA no escopo da Guerra Fria 2.0, os atos em Hong Kong eram coisa de traidores da pátria.

Já a Rússia, que ainda comporta um sistema multipartidário na superfície e gosta de se mostrar ao mundo apenas como diferente do Ocidente, mas democrática à sua maneira, usou eufemismos: Putin mesmo disse que Navalni apenas responde à Justiça, ignorando o alinhamento das cortes ao Kremlin.

Os russos foram às ruas de forma maciça após a prisão do opositor neste ano. Foram recebidos com crescente repressão policial, que acabou por desestruturar a resistência.

As medidas seguintes foram mais sutis. Ações levaram grupos oposicionistas a serem declarados extremistas e fora da lei, e dezenas de figuras de proa foram proibidas de participar de eleições.

Ainda assim, o país elegerá desta sexta (17) a domingo (19) os 450 novos deputados da Duma, a Câmara baixa do Parlamento. Hoje, 336 cadeiras são do Rússia Unida, partido criado para sustentar o putinismo.

Em todo o país, haverá também eleições legislativas locais. E haja país: são 85 entes federais, espalhados por 11 fusos horários. "Ao fim o que interessa é que todos estejam com o Kremlin", disse por mensagem o ativista Anton Tcherbakov, associado ao grupo de monitoramento eleitoral Golos (voz, ou voto, em russo).

A própria entidade caiu na malha fina do governo, sendo designada "agente estrangeiro" --assim como aconteceu com praticamente todas as ONGs e veículos independentes de imprensa, num país em que a mídia é quase toda estatal. Nessa condição, todos são sujeitos a inspeções fiscais e multas incapacitantes, baseadas na suposição de que recebem dinheiro estrangeiro --o que é verdade em muitos casos-- para difamar o Estado --o que é bastante discutível.

Tcherbakov afirma acreditar que o Rússia Unida ganhará, como sempre, ainda que pesquisas mostrem um declínio de sua popularidade, para qualquer coisa como 25% ou 30% de aprovação.

Por outro lado, eleitoralmente eles são favoritos: análise agregada mostra o partido com mais de 40% das intenções de voto, ante cerca de 20% dos comunistas, que de todo modo são vistos como uma oposição consentida. Ao todo, concorrem 14 partidos.

A fundação de Navalni, que segue numa cadeia próxima de Moscou, já era considerado agente estrangeiro, mas passou a ser rotulada de extremista. Assim, pelo menos cinco de suas lideranças principais foram barradas do pleito.

O time de Navalni vinha trabalhando desde 2018 numa tática chamada "voto inteligente": apoiar qualquer um que não seja do Rússia Unida para ter chances em determinada região.

Houve sucessos pontuais, notadamente em eleições locais em Moscou, antes do aumento da repressão. Curiosamente, Navalni em si nunca passou dos 5% de aprovação como candidato a presidente, por exemplo, e mesmo assim as cortes pró-Kremlin o barraram de disputar em 2018.

Na quarta (15), o grupo do opositor nomeou 1.234 candidatos em toda a Rússia para serem objeto do tal voto inteligente, a maioria esmagadora comunista.

A situação ganha tons acinzentados quando se lembra que as manobras russas têm um verniz legalista. Putin sempre fez questão de jogar dentro da Constituição, e quando enfim resolveu mudá-la em 2020 para poder abrir o caminho para tentar ficar no poder até 2036, o fez com um plebiscito.

Há acusações de fraude, mas o que determina os resultados sempre favoráveis ao Kremlin tem mais a ver com a ossificação do sistema político russo, que gira em torno de Putin como se ele fosse um czar a promover disputas entre blocos rivais na corte.

É algo bastante distinto do que vai ocorrer em Hong Kong. Lá, a eleição é muito mais limitada: apenas 364 assentos do renovado Comitê Eleitoral, que segundo as novas regras chinesas passou de 1.200 para 1.500 integrantes.

Oriundos de um complexo sistema em que há indicações de 38 guildas profissionais, entre outros nomes, esses grandes eleitores são quem escolhem o executivo-chefe do território e 40 dos 90 membros do Conselho Legislativo --que também foi ampliado.

O truque é que todos têm agora de ser considerados "patriotas" por Pequim, o que torna a votação um ritual mais simbólico do que já era --no último pleito, a eleição local de 2019, a oposição ganhou de lavada. Ainda assim, o temor de distúrbios levou Hong Kong a mobilizar 4.000 policiais para o pleito, que acontece no domingo (19). Detalhe: há apenas 4.899 eleitores cadastrados.

Com resultados previsíveis, ainda que com escopos bem distintos, os pleitos simbolizam o momento de disputa entre potências em que o mundo se insere --algo estimulado e defendido pelo próprio Biden, apostando de certa forma que ao menos o Ocidente vai preferir a democracia liberal ao fim.

Não é casual que a aliança tática entre Putin e Xi cada vez ganhe ares de casamento estratégico, apesar de desconfianças mútuas.