Romance de Nelson Rodrigues é retrato do Brasil que trinca os dentes contra volúpia
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sábado, 27 de fevereiro de 2021
ÚRSULA PASSOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Publicado como folhetim entre 1959 e 1960 no jornal carioca Última Hora, "Asfalto Selvagem", ainda que obra de ficção, não passa distante do noticiário. Muitos dos temas e personagens de Nelson Rodrigues ali, como em suas peças de teatro, são reconhecíveis em nosso dia a dia. O pior: até hoje.
O romance passou à memória coletiva como a história de Engraçadinha, como diz seu subtítulo, de seus amores e seus pecados. Mas há muito mais. Em outros personagens, centrais ou coadjuvantes, é possível ver um retrato do Brasil urbano, do asfalto.
Estão no livro a violência policial, a homofobia e a tentação autoritária -"O Brasil precisa de um Hitler", pensa sempre um deputado. Está também o juiz que dá carteirada -"o senhor está falando com uma autoridade", diz ele- para não pagar um táxi ou para ter lugar garantido no cinema cheio -à época, não se exigia máscara. É uma surra de Brasil.
Para os que acham que o politicamente correto dos últimos anos deixou o mundo mais chato e para os que acreditam que mudar o nome com o qual chamamos as coisas promoverá rapidamente uma mudança das próprias coisas, fica uma espécie de lição. Não há um país mais livre e menos reprimido para o qual voltar. Seja no fim dos anos 1930, quando a história de Nelson começa, no despertar dos anos 1960, quando se passa sua segunda parte, ou em 2021, o Brasil é um país que trinca os dentes contra a volúpia e outros prazeres.
Sempre houve forças que impedem as pessoas de se expressarem como bem queiram. Para fazer bonito aos vizinhos, a Deus, ao padre ou ao grupo de mesma ideologia, aceita-se viver uma vida de aparências que esconde atos ou pensamentos não tolerados. Nelson, porém, entra nas casas, nos quartos e na cabeça de seus personagens, desatando, mesmo no leitor do século 21, um riso nervoso ao escancarar uma sociedade de falsos moralistas.
Como não sentir um leve desespero lendo as conversas e pensamentos de desprezo ao casamento, sobre como ele é tedioso, e a infidelidade, inevitável, e se lembrar de camisetas que fizeram moda por aqui com o desenho de um casal no altar e a expressão "game over" (fim de jogo)? Mas todos caminhamos rumo ao casamento, porque é isso que se espera de nós.
Sob o olhar e o julgamento do outro -e como julgam!- o pudor deve ser extremo, o homem não deve usar regata do Flamengo deixando à vista as axilas peludas, e a menina de família não deve mascar chiclete e nem sentar com os joelhos separados.
É claro que é sobre elas, meninas e mulheres, que recaem com mais força e em maior número as exigências das aparências. As mulheres são apenas de dois tipos: a honesta e a prostituta. A velha divisão entre a mãe, casta, elevada, e a puta permeia todo o romance de Nelson Rodrigues. E a virgindade, como não podia deixar de ser, ocupa um lugar de destaque entre as imposições, a ponto de haver, na história, um médico que "faz virgens" cirurgicamente. Basta uma rápida busca na internet para ver que reconstruções de hímen e testes de virgindade seguem firme e forte.
Os dois grandes conflitos do livro são fruto de tentativas frustradas de se encaixar no mundo das aparências: a tragédia de Sílvio, um quase Édipo, e o drama lésbico de Letícia. Ao descobrir ser irmão, e não primo, de Engraçadinha, por quem tem paixão e ódio por ela ter dado vazão a seu desejo sexual com ele, Sílvio não se cega, mas decepa o pênis. Consciente da impossibilidade de uma relação amorosa com Engraçadinha e consumida pela rejeição da prima e amiga de infância, Letícia dá cabo da vida.
Já nas últimas páginas do livro, há um diálogo que faz as vezes de fim de parábola. Nele, um membro do Itamaraty e Abdias do Nascimento, um dos muitos personagens reais que Nelson mobiliza na trama, conversam sobre a ausência do sexo nos romances de sua época. Segundo a fala, nunca o brasileiro foi tão obsceno. Quem dera.
ASFALTO SELVAGEM: ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS
Preço R$ 59,90 (512 págs.); R$ 37,90 (ebook)
Autor Nelson Rodrigues
Editora HarperCollins

