SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A remoção de cerca de 400 famílias de imóveis na região da cracolândia foi denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pela ONG Conectas, nesta quinta-feira (4). A retirada dos moradores está marcada para ocorrer até o dia 10 deste mês, durante o pior período da pandemia do novo coronavírus.

A preocupação da defensoria e da entidade é que boa parte dos moradores desses imóveis, muitos deles pensões, acabem indo parar na rua.

Pelo último censo do município, de 2019, 24.344 pessoas não tinham onde morar --11.693 estavam acolhidas em albergues públicos e outras 12.651 dormiam nas ruas.

Outros dados, do governo federal, indicam um número maior: pelo Cadastro Único, sistema do Ministério da Cidadania, em dezembro de 2019 havia 33.292 famílias sem-teto na capital paulista.

Com a crise causada pela pandemia, o número de moradores de rua vem crescendo, segundo entidades e voluntários que trabalham com essa população.

O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No local em que os imóveis serão derruabados --duas quadras na Luz em que alguns deles já foram ao chão--, a Cohab, órgão da prefeitura, pretende fazer 700 unidades de moradias populares por meio do Programa de Parceria Público-Privada Casa Paulista, do governo do estado.

O local é uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), classificação da legislação municipal para áreas voltadas à construção de moradia social.

Desde o final do ano passado, uma liminar obtida pela defensoria impedia a administração municipal de fazer a desapropriação dos imóveis e retirar os moradores. As famílias, obrigava a medida judicial, deveriam receber da prefeitura apoio em ações sociais e de saúde --o país e o estado de São Paulo vêm registrando recordes de mortes causados pelo coronavírus dia após dia.

No último mês, a liminar foi derrubada e a prefeitura autorizada a retirar os moradores dos imóveis, grande parte deles pensões habitadas por famílias de baixa renda.

Os dois quarteirões que serão derrubados, conhecidos por quadras 37 e 38, ficam ao lado da obra do Hospital Pérola Byington, previsto como parte da ação de revitalização da cracolândia. O projeto tem forte rejeição de moradores, entidades e ONGs que atuam no local.

De acordo com a defensoria, um dos problemas com a nova remoção é que apenas 190 das cerca de 400 famílias foram cadastradas pela prefeitura para receber o auxílio-aluguel de R$ 400 mensais.

"É uma região com uma dinâmica própria. Muita gente chega e sai. Os cadastros são de 2017, estão desatualizados", afirma a defensora pública Fernanda Balera.

Os problemas não param por aí. O valor oferecido pela prefeitura é insuficiente para alugar qualquer imóvel na região central da cidade.

"Tem gente que mora nesses locais há mais de 20, 30 anos, que têm a vida toda organizada no centro, escola dos filhos, trabalho, e que terão que ir para longe porque R$ 400 não paga nem um quarto por ali", diz a defensora.

São pessoas como Juliana Ribeiro da Silva, 35, que trabalha na própria pensão em que vive com o marido e quatro filhos. "Meu marido teve um AVC e meus filhos todos estudam aqui, o que querem que eu faça com R$ 400? Onde vou morar?", diz.

Para a defensora pública a resposta não é tão difícil de imaginar no caso de muitas famílias. "Alguns deles vão acabar indo pra rua, vão dormir na rua", afirma.

A denúncia protocolada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos aponta que o tipo de assitência oferecida pela Secretaria Muncipal de Assistência e Desenvolvimento Social evidencia qual será o destino dessas pessoas.

"Salienta-se que a SMADS oferece políticas voltadas para a população em situação de rua. Com isso, a prefeitura está admitindo que irá remover 375 famílias sem atendimento habitacional, as quais passarão a ser consideradas como população em situação de rua", diz o documento.

Fernanda também contesta a retirada dos moradores durante a pandemia. "Se é para construir mordias populares, as pessoas que ali vivem deveriam ser incluídas. E por que fazer isso, colocar elas na rua, durante a pandemia?."

Em julho do ano passado, o Ministério Público recomendou à prefeitura que paralisasse as remoções de moradores que vivem em hotéis e pensões na cracolândia tendo em vista a excepcionalidade desse período e por esses imóveis serem, de fato, a residência de muitas famílias e não apenas locais de passagem,

Para o psiquiatra Flávio Falcone, conhecido na região como Flávio Palhaço, e que atua em ações de redução de danos na cracolândia há quase 10 anos, a retirada dos moradores atende a uma lógica do mercado imobiliário praticamente impossível de ser freada.

"O prefeito Bruno Covas (PSDB) está retribuindo o apoio que recebeu das empresas desse setor durante a eleição", diz.

A despropriação do quarteirão ao lado para a construção do Pérola Byington também foi cercada por polêmicas, em 2018. Até a véspera da saída dos moradores, cerca de 50 famílias, das 225 que moravam no local, resistiam a sair.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a situação de moradores e usuários de drogas na cracolândia é alvo de atenção por parte de ONGs e entidades que atuam no local. A pressão da sociedade civil fez com que a prefeitura adotasse medidas de mitigação do contágio.

OUTRO LADO

A Prefeitura de São Paulo afirma que "cumpre rigorosamente todo o procedimento pactuado com o Poder Judiciário para atender as 190 famílias que moravam na região da Luz em 2017, quando foram cadastradas para receber moradia digna e definitiva."

Em nota, informa que as famílias receberão o auxílio-aluguel até que recebam moradia definitiva. "O cadastro de todas as famílias que habitavam o local foi aprovado pelo Conselho Gestor da ZEIS-3 e ratificado pelo Judiciário. Todas as tentativas de reverter o atendimento a essas pessoas, seja por ação proposta pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público, foram rejeitadas", afirma a nota.

Sobre a legalidade da ação, afirma que "o Tribunal de Justiça vem reiteradamente atestando a legalidade das ações do município e do Governo do Estado em prover habitação a pessoas em situação de vulnerabilidade e, consequentemente, adensar e requalificar a região central da cidade".

A administração municipal diz que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social "acompanha as ações relativas às desapropriações na região das quadras 37 e 38 a fim de identificar os casos não contemplados pela política habitacional e cadastrar os indivíduos e famílias com interesse em acolhimento na rede socioassistencial".

A pasta afirma que "não é possível destinar unidades para as famílias que hoje moram no local, mas não foram cadastradas em 2017, pois isso implicaria em furar a fila dos programas habitacionais do município."

Ainda sobre o destino dessas pessoas, a secretaria diz que "os centros de acolhida do município de São Paulo, na data de 03/03/2021, possuíam mais de 1.600 vagas disponíveis em suas diversas modalidades, número suficiente para englobar todos aqueles que manifestarem interesse por ocasião das ações de desapropriação".