Restrição ao aborto nos EUA prova que força por trás de Trump segue viva
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quinta-feira, 02 de setembro de 2021
IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O virtual banimento dos abortos no Texas, com apoio da Suprema Corte após cinco décadas de marco legal estabelecido no julgamento Roe vs. Wade, é um sinal eloquente da vitalidade da divisão da sociedade norte-americana.
Prova também que o racha criou Donald Trump, o bufão que presidiu o principal país do mundo por quatro anos, mais do que foi insuflado pelo ex-presidente.
Claro, o republicano era um conduíte de uma corrente política que remonta aos tempos da guerra cultural de Richard Nixon nos anos 1960 e 1970, passando pela emergência ultraconservadora do movimento Tea Party, e manipulava esses sentimentos de forma hábil.
Mas Trump era sintoma mais que causa, por mais que se esforçasse em encarnar o papel de herói do conservadorismo, para horror dos verdadeiros conservadores do seu país e deleite de clones imperfeitos alhures, como Jair Bolsonaro.
Quando foi derrotado por Joe Biden na eleição de 2020, até pelo seu comportamento golpista que desaguou no 6 de janeiro do Capitólio invadido, houve uma esperança entre os autodenominados progressistas que o inimigo havia sido contido.
Biden, afinal, capitalizara o fastio americano na reta final do mandato de Trump, alimentado pela sua condução errática do combate à pandemia.
O democrata, contudo, não teve uma vitória fácil, tendo virado votos decisivos ante uma massa enorme que divide o país em azul e vermelho, com sinais cromáticos inversos em relação ao que acontece no resto do mundo.
No poder, prometeu o que até Michel Temer havia prometido em 2016, pacificar o país. Está a léguas disso. Na sua política externa, manteve como seria previsível boa parte da rota trumpista, apenas burilando sua forma de interação com o mundo, mas quase nada do conteúdo: China e Afeganistão estão aí para exemplificar.
Em casa, a questão texana do aborto é altamente simbólica. Estados de extração mais conservadora sempre buscaram apertar restrições contra a prática, esbarrando em recursos feitos à Suprema Corte por entidades pró-aborto contra as autoridades.
Desta vez, o Senado texano usou um artifício novo. Primeiro, criou uma regra que inviabiliza o aborto após o coração do feto bater, algo como seis semanas. Com isso, talvez 85% das interrupções feitas no estado em 2020 teriam sido vetadas se a lei já valesse.
Nem gravidez provocada por estupro ou incesto é isenta da regra.
Mas o truque veio com o empoderamento individual para a aplicação da lei: a ação contra pessoas que ajudam mulheres a abortar fora dos parâmetros draconianos colocados deve ser feita por pessoas físicas ou entidades de direito privado, não pelo estado.
Se ganhar a causa, o acusador ainda leva US$ 10 mil para casa, além de custos processuais. Se perder, fica por isso.
Desta forma, sem autoridades envolvidas, tudo deve ocorrer no nível da Justiça estadual, e não em cortes federais que são obrigadas a seguir a decisão Roe vs. Wade, de 1973.
A Suprema Corte foi instada a se manifestar e decidiu não interferir na decisão texana, por 5 votos a 4. Como já aconteceu antes, seu presidente, o conservador John Roberts, votou com os três juízes liberais indicados por presidentes democratas.
Em um sinal trocado com o debate no Brasil, onde o presidente trumpista é crítico da Suprema Corte, Biden queixou-se da decisão -mas nem por isso sugere protestos públicos, como Bolsonaro faz mirando o 7 de Setembro.
Além de ver iniciativas no Congresso contra a decisão, o democrata pode reviver uma ideia que ventilou nos estertores do governo Trump, quando o republicano indicou uma conservadora para o tribunal após a morte de Ruth Bader Ginsburg, ícone dos liberais.
Primeiro, o Partido Democrata tentou impedir a indicação, alegando que Trump não poderia fazer isso a oito dias da eleição.
Depois, foi ventilada a hipótese de que Biden poderia poderia ampliar a composição da Suprema Corte, hoje com nove integrantes, de forma a amainar o peso da maioria de seis juízes conservadores que vai se manter até algum deles morrerem ou decidirem se aposentar.
No poder, Biden criou uma comissão para analisar o tema e, nesta quinta (2), sua porta-voz disse que ele "não mudou de ideia" acerca da ampliação.
Na América do Sul, dois líderes adotaram tal visão: o esquerdista Hugo Chávez, que levou o plano a cabo na Venezuela em 2003, e o então candidato a presidente Bolsonaro em 2018 -que por ora prefere apresentar pedidos de impeachment de ministros da corte.
Isso mostra que embates entre Poderes ocorrem sob quaisquer colorações ideológicas. No caso específico americano, a traquinagem jurídica do Texas tende a ser reproduzida por estados conservadores governados por republicanos, provando que a guerra cultural está viva e passa bem nos EUA de Biden.