MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - Após semanas de críticas internas e externas pela condução da crise de refugiados causada pela guerra na Ucrânia, o Reino Unido adotou novas medidas para responder à fuga de civis que já envolve mais de 3,1 milhões de pessoas.

Depois de anunciar um programa restrito a ucranianos que tenham familiares residentes no país, o governo lançou nesta semana o "Casas para Ucrânia", um esquema de acolhimento patrocinado pelo Estado.

As ações, no entanto, têm despertado alertas de organizações especializadas em imigração, que apontaram alcance limitado, aspectos burocráticos incompatíveis com a urgência da situação e a possibilidade de colocar os próprios imigrantes em risco.

Um dos pontos mais criticados é a exigência de um visto especial, em contraste com a política de portas abertas da União Europeia. O bloco, do qual o Reino Unido se retirou há dois anos, adotou mecanismo inédito que, entre outras medidas, libera a entrada em seu território mesmo para refugiados ucranianos que não tenham visto ou passaporte.

A primeira resposta do governo britânico após a invasão russa foi dada no dia 4 de março, com a criação de um visto especial, exclusivo para ucranianos que tenham familiares no Reino Unido. Inicialmente, o processo de obtenção do documento envolvia, assim como para um visto tradicional, o agendamento de uma etapa presencial, para a coleta de impressões digitais e reconhecimento facial.

No mesmo dia, a Associação de Advogados de Imigração (Ilpa, na sigla em inglês) se manifestou contra o procedimento, justificando que os guichês do governo para obtenção de vistos estavam fechados em Kiev, o que forçaria o deslocamento dos refugiados para outras cidades.

"Nossa recomendação principal é remover a exigência de vistos. É o passo mais eficaz que o governo pode e deve tomar para garantir a evacuação e o acomodamento de quem foge da invasão da Ucrânia", disse a entidade.

Como resultado, postos para obtenção do visto em países vizinhos, como a Polônia, viram surgir filas de pessoas esperando debaixo de neve. Em Calais, na França, de onde partem balsas para Dover, na Inglaterra, cerca de 600 ucranianos tiveram, nos primeiros dez dias de março, a entrada negada por agentes britânicos que operam na fronteira, segundo o jornal The Guardian. O ministro do Interior francês descreveu o cenário como "falta de humanidade" do governo britânico.

Além da dificuldade de conseguir um agendamento, outro gargalo era a necessidade de recolhimento da biometria. Diante das cenas de refugiados sendo barrados e em resposta a críticas internas, o governo atualizou as regras e eliminou a exigência da etapa presencial.

Desde a última terça-feira (15), refugiados com passaporte ucraniano válido podem começar e finalizar o pedido de visto pela internet e, em caso de aprovação, podem cruzar a fronteira com a carta enviada pelo departamento de imigração. A coleta da biometria passou a ser realizada após a entrada no Reino Unido.

Para a Anistia Internacional, a mudança foi insuficiente. "O processo ainda está cheio de burocracia, com pessoas desesperadas e exaustas sendo obrigadas a fornecer certidões de nascimento, comprovantes de relacionamento e residência, tudo traduzido para o inglês", disse Sacha Deshmukh, responsável pela seção inglesa da organização, que também defende a abolição total do pedido de visto a ucranianos.

Desde o início da crise, o governo britânico reluta em abrir mão do visto, alegando razões de segurança, como a possibilidade de russos ou extremistas cruzarem as fronteiras infiltrados.

"As verificações de segurança e biometria são uma parte fundamental do nosso processo de aprovação de vistos. Isso é vital para manter os cidadãos britânicos seguros e para garantir que estamos ajudando aqueles que realmente precisam, principalmente porque as tropas russas estão agora se infiltrando na Ucrânia", declarou, no fim de fevereiro, a ministra do Interior britânica, Priti Patel.

Em meio a críticas vindas inclusive de membros do Partido Conservador, o primeiro-ministro Boris Johnson endossou, na semana passada, a necessidade de fronteiras controladas para os refugiados. "Somos um país muito generoso. O que queremos é ter a possibilidade de verificar. Não podemos ter um sistema em que as pessoas possam entrar no Reino Unido sem nenhum controle."

Além de Boris, os dois ministros que conduzem a crise migratória da Ucrânia foram apoiadores do brexit. Tanto Patel quanto Michael Gove (Habitação) participaram ativamente da campanha que antecedeu o referendo de 2016. Um dos motes do movimento a favor da saída da UE foi o slogan "take back control" (retomar o controle), em referências às fronteiras, às leis e aos recursos financeiros.

Até esta quinta-feira (17), segundo o governo britânico, foram abertos cerca de 45,8 mil pedidos de visto familiar por refugiados ucranianos, dos quais 6.100 estão aprovados. O alcance do programa familiar é limitado, uma vez que a estimativa é de que a comunidade ucraniana no país seja de 35 mil pessoas.

Dos 3 milhões de refugiados da Ucrânia, a grande maioria cruzou as fronteiras rumo a países da União Europeia, e somente a Polônia já recebeu 1,9 milhão de pessoas. Não raro, os refugiados continuam se deslocando, ao encontro de familiares e amigos em outros países. Entre as quatro maiores economias do continente europeu, a Alemanha é a que mais recebeu refugiados do conflito (175 mil). Em seguida vem a Itália (44 mil), França (13,5 mil) e o Reino Unido (5.500).

Da necessidade de oferecer uma resposta mais abrangente nasceu o "Casas para Ucrânia". Pelo programa, pessoas, empresas e instituições de caridades podem hospedar, por pelo menos seis meses, refugiados ucranianos em troca de £ 350 (R$ 2.300) por mês.

A nova medida ainda acaba com a exigência de vínculos familiares e, mesmo que não conheça nenhum ucraniano precisando de abrigo, um britânico pode cadastrar sua casa no programa. Para participar, os refugiados devem, na inscrição, indicar o nome de um anfitrião e solicitar um visto especial -instituições de caridade trabalham para conectar as partes.

Até a quarta-feira, o programa já havia recebido mais de 120 mil pedidos de adesão de futuros anfitriões. Isso acendeu o sinal de alerta dos especialistas, como a organização Refugees at Home, que se dedica a conectar famílias refugiadas ou em processo de pedido de asilo com pessoas que tenham "um quarto vazio" no Reino Unido.

Apesar de celebrar a criação do programa, a entidade listou uma série de pontos que precisam ser observados, como a necessidade de vistoria dos espaços oferecidos por anfitriões, entrevista prévia das famílias anfitriãs e um plano de substituição para casos malsucedidos de acolhimento.

Daniel Sohege, diretor de comunicação da Love146, organização que combate exploração infantil, levantou a preocupação de que decisões apressadas resultem em situações de risco para mulheres e crianças ucranianas, o perfil majoritário dos refugiados. "O programa coloca as pessoas vulneráveis em risco de serem exploradas e traficadas."

Tanto os refugiados que receberem o visto por meio do vínculo familiar quanto pelo sistema de patrocínio podem permanecer no país por até três anos, com direito a trabalhar e a ter acesso a saúde e educação.

O prazo é o mesmo adotado pela União Europeia, por meio da Diretiva de Proteção Temporária, aprovada por unanimidade no dia 3 de março. O mecanismo, criado em 2001 no contexto dos conflitos da dissolução da antiga Iugoslávia, jamais havia sido ativado. Com o objetivo de agilizar e uniformizar a resposta dos 27 países-membros do bloco, o conjunto de ações estende direitos básicos dos residentes aos refugiados e simplifica controles de fronteiras.