SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A chancelaria do Reino Unido abriu neste sábado (22) uma nova frente de acusações contra Moscou e afirmou que o presidente Vladimir Putin traça um plano para instalar um líder pró-russo na Ucrânia. O movimento adiciona uma camada de tensão na crise depois de uma semana de conversas diplomáticas que se mostraram, mais uma vez, infrutíferas.

A declaração da secretária de Relações Exteriores, Liz Truss, seguiu um protocolo pouco usual em se tratando de diplomacia, com um comunicado divulgado tarde da noite de sábado. Citando a inteligência britânica, o texto aponta que as articulações russas se dariam em prol de Ievguêni Muraiev, pré-candidato nas eleições presidenciais de 2024 e líder de um partido na oposição.

O comunicado não detalha, porém, como a Rússia viabilizaria a queda do atual presidente, Volodimir Zelenski, e a ascensão de Muraiev nem explica se o plano dependeria de uma invasão por tropas russas —possibilidade que o Ocidente vem aventando ser cada vez mais real, em especial após o deslocamento de 100 mil soldados para a região da fronteira entre os países.

Tampouco fica claro, no documento divulgado pela chancelaria, se Moscou teria chegado a informar Muraiev de que ele seria cotado como um possível futuro líder da Ucrânia alinhado a Moscou.

Muraiev, por sua vez, se manifestou neste domingo (23) em suas redes sociais dizendo que a Ucrânia precisa de novas lideranças. "O povo ucraniano precisa do Estado de Direito, paz, políticas econômicas e sociais sólidas e pragmáticas e novos líderes políticos."

"Os tempos dos políticos pró-ocidentais ou pró-russos acabaram. (...) Parem de nos dividir entre pró-russos e pró-ocidentais", acrescentou ele.

Autoridades britânicas ligadas à inteligência e envolvidas na elaboração do dossiê disseram ao jornal americano The New York Times, sob condição de anonimato, que a intenção da divulgação do comunicado visava também a impedir a concretização de tais planos ao expor a suposta trama de Putin.

O documento ainda cita outros quatro políticos ucranianos que teriam laços com os serviços de inteligência russos, incluindo agentes envolvidos em planos de ataque à Ucrânia. Todos já ocuparam cargos no governo e chegaram a fugir para a Rússia em 2014, após a revolta popular que derrubou o então presidente Viktor Yanukovich —nessa ocasião que Moscou anexou a Crimeia e passou a apoiar a guerra civil de separatistas étnicos na região conhecida como Donbass.

Durante seu discurso semanal na praça de São Pedro, no Vaticano, o papa Francisco pediu neste domingo que um dia internacional de "oração pela paz" aconteça em 26 de janeiro para impedir que a crise na Ucrânia se agrave, dizendo que as tensões estão ameaçando a segurança da Europa e que podem acarretar consequências ainda mais graves.

Francisco fez um apelo para que "todas as pessoas de boa vontade" rezem na próxima quarta-feira e que as iniciativas políticas "estejam a serviço da fraternidade humana" e não de interesses partidários. O Vaticano não deu detalhes sobre como a prece pode acontecer.

"Aqueles que perseguem seus interesses prejudicando os outros estão em conflito com sua vocação humana, porque todos fomos criados como irmãos", afirmou.

Também no domingo, Dominic Raab, vice primeiro-ministro britânico, disse ao canal televisivo Sky News que a Rússia irá enfrentar sanções econômicas severas se viabilizar um plano de instalar um regime a favor de seus interesses na Ucrânia.

"Haverá consequências muito sérias se a Rússia tomar essa medida e tentar invadir a Ucrânia", disse ele.

Kiev também se manifestou depois da acusação britânica dizendo que vai continuar combatendo pessoas e entidades pró-Rússia que pretendem desestabilizar a Ucrânia.

"Nosso estado continuará sua política de desmantelar quaisquer estruturas oligárquicas e políticas que estejam trabalhando para desestabilizar a Ucrânia ou ajudar invasores", disse Mykhailo Podolyak, assessor do chefe de gabinete do presidente Volodimir Zelenski.

O assessor também relembrou a recente decisão de Washington de aplicar medidas de sansão a quatro ucranianos, incluindo dois deputados em exercício, acusados ​​de colaborar com os serviços secretos russos, e afirmou que as as informações britânicas completam a lista de pessoas "selecionadas" pelo Kremlin para "tentar promover os interesses russos" na Ucrânia

Moscou reagiu ao relatório britânico na manhã de domingo, acusando Londres de espalhar desinformação.

A acusação se deu poucas horas depois de o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, aceitar um convite para se encontrar com seu contraparte britânico, Ben Wallace, para discutir a crise na fronteira ucraniana. Os serviços estatais russos de informação também noticiaram que Truss deve ir a Moscou em fevereiro para se reunir com o chanceler russo, Serguei Lavrov.

Esta é a segunda vez em pouco mais de uma semana que uma potência do Ocidente acusa publicamente a Rússia de interferir em assuntos internos da Ucrânia.

Em 14 de janeiro, os Estados Unidos apontaram que o Kremlin estaria preparando operações de sabotagem e de desinformação para justificar uma eventual invasão do país vizinho. Neste sábado, autoridades de Washington classificaram como preocupante o suposto plano revelado pelo comunicado do Reino Unido.

A tensão diplomática com os britânicos também ocorre no mesmo dia em que o chefe da Marinha alemã pediu demissão após deflagrar um mal-estar entre Berlim e Kiev. O vice-almirante Kay-Achim Schönbach havia dito que Putin merece respeito e só quer ser tratado de igual para igual pelo Ocidente. Afirmou, ainda, que a península da Crimeia, anexada por Moscou, "nunca voltará" ao controle ucraniano.

A Alemanha tem especial interesse na disputa entre Rússia e Ucrânia por causa do gasoduto Nord Stream 2. A estrutura foi uma das cartas colocadas na mesa por autoridades do país em conversas diplomáticas nesta semana, nas quais se colocaram ao lado de Kiev.

Tanto a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock (em encontro com Lavrov) quanto o premiê Olaf Scholz (que se reuniu com o secretário-geral da Otan) disseram que Berlim sabe que o custo de defender a Ucrânia no caso de uma invasão russa será grande —e todos estão dispostos a pagá-lo, via sanções, por exemplo.

O Reino Unido também vinha atuando na crise. O país anunciou ter iniciado o fornecimento de armamentos antitanque aos ucranianos e, na quinta-feira (20), participou ao lado de França e Alemanha de reuniões com os EUA, nas quais o discurso das autoridades convergiu para demonstrar união em defesa de Kiev.

O premiê Boris Johnson, que luta para se segurar no cargo de primeiro-ministro após uma série de crises internas, afirmou que, "se a Rússia fizer qualquer tipo de incursão na Ucrânia, em qualquer escala, será um desastre, não apenas para a Ucrânia como também para a Rússia".

Os comentários tentaram contornar uma gafe de Biden, para quem os países ocidentais estavam divididos sobre como reagir a uma "pequena incursão" de Putin no vizinho. Em entrevista para marcar o aniversário de um ano de mandato, o democrata afirmou que, "se for uma pequena incursão, acabaremos tendo que discutir sobre o que fazer". Depois, disse que uma invasão de fato "seria um desastre para a Rússia".

A declaração pegou mal e, logo após o término da coletiva, a Casa Branca correu para dizer que o presidente não toleraria nenhuma incursão, por menor que fosse.