TOYOHASHI, JAPÃO (FOLHAPRESS) - "Para lá daquela porta, o amor, o carinho e a liberdade acabaram." Assim Pinho definiu o tempo em que ficou preso em Portugal. Ele tinha seis anos quando foi internado num reformatório pela primeira vez e passou por outras instituições até conseguir sair, aos 14.

Pinho, que viveu entre 1927 e 1993 era José Joaquim de Almeida, um português de Vila Nova de Gaia que, décadas depois das internações, se tornou artista e retratou suas lembranças da época em pinturas a óleo e gravurasa carvão.

Vinte quadros dele foram parar em um dossiê chamado "O Destino do Rapaz da Rua", no Arquivo Histórico da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a DGRSP, da Penitenciária de Lisboa, uma construção do século 19 que reúne milhares de documentos sobre prisões de Portugal.

Os quadros retratam grades, guardas, pessoas de pés descalços, cabeças raspadas e corpos esquálidos vestindo uniformes azuis. Olhando mais de perto, dá para notar que, na verdade, não são prisioneiros comuns, adultos, mas crianças, levando lápis de cor no bolso do uniforme.

Junto aos quadros foi arquivado um texto, não assinado. "Os que viveram uma infância dentro de muros continuam sempre fugindo, sempre sós na multidão", diz um trecho.

Ao encontrar as obras, a historiadora brasileira Viviane Borges ficou magnetizada com a intensidade das imagens e o mistério diante da ausência de informações sobre o autor. Era 12 de fevereiro de 2019, seu primeiro dia no pós-doutorado em Portugal.

"As telas pareciam tentar contar uma história, indicavam uma denúncia, uma tentativa de sensibilizar ou mesmo chocar o observador", afirma Borges, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina, que em novembro lança o livro"Pinho", publicado pelo selo Manicómio em Portugal e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina, com distribuição gratuita para museus e universidades.

"Pinho foi um artista sensível que guardava dentro de si vários monstros. Pintar o ajudava tanto a trazer beleza a sua vida como a expurgar o que o atormentava", diz ela, especialista em história de instituições de confinamento.

Reformatórios, conta a historiadora, eram o destino de crianças que viviam nas ruas, ou porque foram abandonadas ou porque foram levadas para lá por situações sociais. Pinho não foi abandonado, mas internado devido às condições de sua mãe, uma jovem solteira que enfrentava dificuldades financeiras. Um dos quadros mostra a despedida deles nos portões.

O garoto passou por instituições como o Colégio dos Carvalhos e a Tutoria de Menores, no Porto, e o Reformatório de Santa Clara, em Vila do Conde -- não há informações sobre seus prontuários ou fotos dele da época. Nunca conheceu o pai, mas soube a partir de cartas de sua mãe que ele morava nos Estados Unidos e escolheu como nome artístico seu sobrenome, Pinho.

Borges tinha em mãos a assinatura que dizia "Pinho" e as datas das telas, mas não muito mais. Os arquivistas desengavetaram um email de 2014, época em que os quadros foram catalogados na DGRSP, no qual uma portuguesa pedia autorização para que seu pai já idoso, António Fernando, pudesse ver as artes de Pinho, com quem convivera num reformatório. A visita nunca ocorreu, mas o email foi uma pista importante.

A historiadora escreveu para a autora da mensagem e marcou uma visita na cidade do Porto. No encontro, viu um breve catálogo dos quadros de Pinho, no qual constava um endereço de um ateliê. Ela escreveu uma carta e recebeu um telefonema. Era a viúva de Pinho, Henriqueta.

"Eu me lembro de ela me dizendo que ele era um pintor nato. 'Era um vício. Ele tinha que pintar, tinha que desenhar'", relata a pesquisadora, que visitou a casa onde a viúva mora desde a década de 1960 e que tinha um ateliê na antiga cave, um tipo de porão.

"O lugar está como ele deixou, dona Henriqueta não tira da ordem os pincéis, as tintas, o chapéu de palha pendurado ao lado do cavalete e a última tela inacabada."

Borges faz parte do coletivo Arquivos Marginais, que pesquisa e atua na divulgação científica de acervos ligados a instituições de isolamento, buscando trazer à tona experiências de indivíduos involuntariamente confinados em prisões, leprosários, manicômiose reformatórios.

Dentro dessa área de pesquisa, os quadros de Pinho são considerados "memórias difíceis", ou seja, remetem a lembranças sombrias, "ligadas a uma história que se prefere, consciente ou inconscientemente, não lembrar", diz.

Ao entrevistar a família e os amigos do artista, porém, a autora conseguiu identificar um homem feliz, que não tinha problemas em comentar a infância traumática.

Depois do reformatório, Pinho conseguiu uma bolsa em uma escola técnica de arte, trabalhou com serigrafia, se tornou um profissional bem-sucedido, casou e teve filhos. Nas décadas de 1980 e 1990, pintou os quadros que foram incorporados ao patrimônio prisional português.

No tempo em que viveu em Portugal, Borges conheceu a Manicómio, uma galeria lisboeta voltada a artistascom passagens por instituições prisionais. "Admiro a ideia de incentivar artistas desconhecidos que tiveram suas vidas atravessadas pela experiência institucional", relata ela, que setornou amiga do fundador da casa, Sandro Resende.

A Manicómio ficou responsável pela arte gráfica do livro de Pinho e vai imprimir gratuitamente o título em Portugal. Além de galeria, a casa é um estúdio de arte e uma agência de design que deslanchou em plena pandemia e deve se tornar uma rádio e uma revista.

O nome é uma provocação direta ao estigma da loucura. "É onde a arte dignifica mentes criativas, é um espaço onde não existe estigma", define Resende, o fundador do lugar.