SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando estudava produção de música eletrônica numa faculdade na Mooca, Rafaela Andrade cansou de ouvir de colegas e professores que era necessário investir em equipamentos caros para criar música de qualidade. Para a menina de Itaquera, bairro da zona leste paulistana, com poucos recursos, era uma conversa desanimadora. "Eles falando de MacBook e eu com um fone de ouvido velho, da 25 de Março, todo remendado na fita isolante, emprestado de um amigo", afirma.

Essa percepção foi mudando à medida que comparava suas músicas com as de colegas com acesso a equipamentos sofisticados. "Eu vi que dinheiro não compra talento. As músicas deles eram muito ruins."

Em meados da década passada, já assinando como Badsista, Andrade começou a chamar a atenção no cenário musical paulistano ao criar conexões entre música eletrônica, funk e reggae. Em 2017, produziu o álbum de estreia de Linn da Quebrada --"Pajubá"-- e, no ano passado, o EP "Corpo sem Juízo", de Jup do Bairro, duas artistas que estão na linha de frente da revolução musical trans periférica que ganhou corpo em anos recentes. Como DJ, tocou em festivais consagrados como Glastonbury, no Reino Unido, e Nyege Nyege, em Uganda.

Neste ano, Badsista resolveu sair do lugar de produtora e ir para a frente do palco. Seu álbum de estreia, "Gueto Elegance", traz a artista de 28 anos cantando, compondo e apresentando sua visão de mundo. "Quis me botar para jogo, quis me expor, meu corpo, minha cara, minha voz. Tem coisas na minha cabeça que só eu posso executar", diz, em entrevista pelo telefone.

Apesar de solo, o disco conta com vários colaboradores, incluindo Jup do Bairro nos vocais e na direção de arte de "Chega nas Ideia", RHR, produtor de techno de Londrina, no Paraná, que trabalhou na mixagem e masterização e a queniana-ugandense MC Yallah, que atua nos vocais em "Farse".

Se é comum que a periferia apareça na música como lugar de privação e dificuldade, Badsista preferiu ressaltar a sua elegância. "Na quebrada, a gente cresce achando que ali tudo é feio, que a gente é feio, que nossa roupa é zoada", diz. "Tem muita beleza no trato entre as pessoas e no senso de comunidade."

Segundo a artista, criada em Itaquera e hoje moradora de Cangaíba com a companheira, há mais segurança e pertencimento na periferia do que em bairros centrais como a República ou Santa Cecília, "onde as coisas são muito impessoais".

O fato de morar na zona leste foi decisivo para que ela absorvesse influências de estilos como house, techno e psytrance. A tradição de música eletrônica da região remonta a grandes casas dos anos 1990, como Toco e Sound Factory, e DJs como Marky, Andy e Ricardo Guedes. Foi por meio de primos mais velhos que frequentavam esses lugares que Badsista conheceu o gênero.

Ela atualiza esse legado ao promover seu encontro com novos eixos de música e socialização. Em seu álbum, a faixa "A Braba do Jaca", com vocais da rapper Lari Bxd 777, põe uma base de house sob uma letra que fala de flerte e sexo a partir da cena do funk. "E foi lá no [balie] Mandela que ela gamou em mim/ Te chamei pro barraco, tu ficou de quatro", diz.

A faixa "Chega nas Ideia" reforça a ponte com timbres que poderiam estar tanto numa produção de techno quanto no chamado funk "mandelão", de sonoridade sintética.

Badsista diz enxergar o funk de São Paulo como sendo "muito parecido com o techno de Chicago ou Detroit". "Ele vem dessa cidade mais de concreto, mais dura, isso se transcreve no som, mais 'robôzão', mais tecnológico e menos percussivo."

Segundo ela, o acesso maior à tecnologia foi fundamental para alavancar a criação musical nas periferias. "O primeiro computador que tivemos em casa, em 2005, foi graças ao programa Computador para Todos, do governo Lula", pontua, que também enfatiza que sua entrada na faculdade foi por meio do Prouni, programa de bolsas de estudo para universidades criado em 2004.

"Gueto Elegance" celebra, acima de tudo, o encontro e o empoderamento proporcionado pelas festas e pistas de dança, sejam raves ou fluxos. "Quando falo de festa no álbum é trazendo esse lugar da comunidade e de tudo que você pode viver dentro daquilo", afirma. "Alguns anos atrás eu não era porra nenhuma, uma zé-ninguém. Para estar no lugar onde estou hoje, devo muito a todo mundo que está nesse rolê."