MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) - Independentemente do resultado final de sua audaciosa invasão da Ucrânia, Vladimir Putin já venceu o Ocidente nesta crise aguda, não vista em terras europeias desde que Adolf Hitler enviou suas últimas reservas atravessarem a floresta da Ardenas no inverno de 1944 para tentarem jogar os Aliados ao mar.

Diferentemente do ditador nazista, contudo, o presidente russo não parece estar na vazante terminal de seu poder, ainda que talvez não viva o zênite. Ao contrário, nesta prolongada contenda com o Ocidente, Estados Unidos à frente, deu as cartas desde o começo.

É uma história conhecida, que vai das humilhações sofridas pela Rússia na caótica década do pós-Guerra Fria às salvas de mísseis de cruzeiro da madrugada deste 24 de fevereiro. Putin emergiu como uma espécie de salvador da pátria e, para o russo comum até aqui, entregou um país melhor.

No caminho, contudo, ossificou o sistema político em torno de si. Em 2020, cedeu à tentação da perpetuação institucional, abrindo o caminho para ficar na cadeira até os 83 anos, em 2036. Agora, apresenta à Rússia a perspectiva de muitos anos de ostracismo político-econômico —se não coisa pior.

Os motivos de Putin são conhecidos e obedecem a uma lógica, que é retomar o controle político sobre a antiga periferia soviética para evitar a gula do Ocidente e suas estruturas associadas, a Otan e a União Europeia.

Ninguém pode dizer que o caminho era improvável: em 2008, ele atacou a Geórgia em uma mini-guerra que lembra mais a atual do que o conflito de 2014 na mesma Ucrânia, quando anexou a Crimeia de disparou a guerra civil que está no centro da crise atual.

Ainda assim, por todo seu histórico de jogador tático, limitado ao próximo movimento, em oposição a uma sofisticação estratégica de horizonte estendido, Putin surpreendeu a todos os observadores fora do círculo do alarmismo do complexo ocidental mídia-serviços de inteligência-governos.

Politicamente, Putin provou seu ponto de forma sombria. O mundo do pós-guerra, e aí falamos do conflito encerrado em 1945, está morto. Os espasmos da hegemonia americana do pós-Guerra Fria, que mantinham a estrutura anterior viva por aparelhos, já inexistem.

Não deixa de carregar simbolismo o fato de que a guerra começou enquanto senhores vetustos se digladiavam na mesma Organização das Nações Unidas que tanto Putin quanto o grande sujeito oculto da análise geopolítica do momento, Xi Jinping, defendem como grande palco de um multilateralismo necessário e respeitador das particularidades políticas de cada país.

Só que a Ucrânia, como o russo deixou claro de 2020 para cá, não entra na categoria de Estado. Na visão putinista de mundo, Kiev é um esbirro bolchevique do imperialismo russo, e deve retornar à categoria de "área histórica".

Assim, bombardeie-se, mesmo que isso pareça ilógico por alienar a população que deveria estar tentando conquistar. Mas o jogo de Putin é sobre a flacidez da musculatura do mundo liberal-democrático, e as implicações disso são assustadoras mesmo para brasileiros na periferia.

O presidente diz, com sua ação, que com força bruta pode impor sua vontade. Os adversários, afinal de contas, só conseguem prometer sanções cada vez mais incapacitantes —que até agora não mataram a economia russa e, dependendo da dose aplicada, podem vitimar também seus proponentes.

Se o mundo já era um lugar mais perigoso quando Putin impôs sua lógica à pequena Geórgia, hoje o "novo normal" anunciado pelo chefe da Otan tem a cara da guerra na Europa. Historicamente, regimes democráticos são mais adaptáveis e, por falhos, sujeitos a correções de rumo. Encarnavam aquilo que Churchill falava de a democracia ser a pior forma de governo, à exceção das outras.

Agora, assim como nos anos 1930, seu momento de crise é atacado com força por desafiantes iliberais. Há diferenças óbvias com aquela realidade, mas o cheiro de repetição é incômodo, e o cupim está na casa, como Donald Trump já provara.

Pior para o Ocidente que Joe Biden seja o homem do outro lado —ou Trump, para ficar no duopólio. Ambos não têm a energia para estabelecer um canal para lidar com esse novo normal, assim como Barack Obama errou ao permitir Putin ganhar musculatura ao salvar a ditadura síria na guerra civil.

Evidentemente, não se trata de sugerir que a Otan deva entrar na guerra, por riscos apocalípticos evidentes e o potencial apetite de Putin de também querer se provar crível nesse campo. A essa altura, melhor não duvidar, e esta é outra vitória dele.

Mas o caminho que misturou desprezo aos russos e falta de visão estratégica levou o Ocidente ao impasse atual, com suas instituições repetindo como autômatos os mesmos discursos. Falto diálogo de lado a lado, e aí o russo poderá sempre dizer que alerta sobre isso desde o famoso discurso de Munique em 2007.

É tarde. Putin pode fracassar militarmente, ver sua própria população se mobilizar contra si, acabar engasgado pelas sanções. Ou vencer e ainda achar uma linha de salvação na China.

Seja como for, o resultado está aí: uma demonstração de poderio militar, realpolitik dura e completo desassombro na hora de justificar motivações com mistificações e verdades na mesma medida. O lobo, após tanto ter seu nome gritado, mordeu.