ROSTOV-DO-DON, RÚSSIA (FOLHAPRESS) - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta terça (22) que não vai enviar imediatamente tropas para as duas autoproclamadas repúblicas russas étnicas no Donbass (leste da Ucrânia) que ele reconheceu como independentes.

O movimento, que não pode ser tomado pelo valor de face dado o histórico do Kremlin no campo, visa pressionar ainda mais Kiev a aceitar termos russos para a segurança na região. Com efeito, Putin fez exigências ao governo de Volodimir Zelenski durante uma entrevista coletiva em Moscou.

"Iremos dar ajuda militar se houver um conflito", afirmou Putin. Ele considerou os Acordos de Minsk, que sustentavam o precário cessar-fogo na região desde 2015, "mortos pela liderança ucraniana".

Se há evidente culpa da gestão errática em Kiev, o atestado de óbito dos acordos foi assinado por Putin ao reconhecer as regiões rebeldes. Mais importante, ele deixou em aberto qual é o território que efetivamente considera parte das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk.

Mais importante, ele não disse até onde iria quando os rebeldes demandarem ajuda, mas qualquer movimento além dessa chamada linha de contato que divide separatistas de ucranianos irá configurar uma invasão de fato da Ucrânia.

Os separatistas querem a restauração para si das antigas fronteiras das províncias de Donetsk e Lugansk, das quais ocupam algo menos do que a metade do território pré-guerra civil.

Apesar de ter negado a ideia de restauração de fronteiras do Império Russo mais cedo, na entrevista Putin fez novas ameaças à Ucrânia. Disse que Kiev pode ajudar a encerrar a crise se desistir de tentar aderir à Otan (aliança militar ocidental), centro público de suas queixas, e se for "desmilitarizada" —ele voltou a falar que Zelenski quer armas nucleares, aproveitando uma fala infeliz do ucraniano sobre o tema.

Putin, contudo, usou argumentos frágeis sobre o tema: disse que os ucranianos herdaram da União Soviética tecnologia nuclear, bastando conseguir urânio enriquecido para montar a bomba. Não é tão simples.

Ao mesmo tempo, houve sinalizações de outra natureza. "Mesmo nesses momentos tão difíceis, nós dizemos: estamos prontos para negociações", disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, no YouTube. Ela disse que seu chefe, o chanceler Serguei Lavrov, irá a Genebra discutir a crise com o secretário de Estado americano, Antony Blinken, na quinta (24).

Alguns dados da realidade desafiam a dinâmica passivo-agressiva do Kremlin. Primeiro, ainda há relatos de ambos os lados acerca de ataques sem maternidade clara: um morador de Donetsk falou à reportagem, por telefone, ter ouvido explosões perto do centro da cidade, informação replicada por agências de notícias.

A qualquer momento a tal "ameaça" pode ser invocada, como já foi no nebuloso episódio da suposta destruição de dois blindados ucranianos pelos russos na segunda.

A questão das tropas é ainda mais complexa. Uma moradora da cidade russa de Kursk, junto à fronteira nordeste das áreas rebeldes, repassou à reportagem o que diz ter filmado no fim da tarde de segunda, um comboio militar indo rumo à Ucrânia.

A encarregada de negócios na embaixada dos EUA na Ucrânia, Kristina Kvien, no entanto, afirmou já haver soldados russos uniformizados em Donbass. Circularam na internet vídeos de tanques e caminhões em Donetsk, mas é incerto se eles eram russos ou dos separatistas.

Segundo Ivan Alexeiévitch, taxista que ganha a vida trabalhando em cidades da região fronteiriça e prefere não dizer seu sobrenome, nos últimos dias foram vistos vários comboios de caminhões do Exército rumando de Rostov-do-Don para a fronteira em Avilo-Uspenka, cerca de 95 km a noroeste da capital da província de Rostov.

"Ninguém sabe dizer do que se tratava", afirmou. Por outro lado, no mesmo período ele mesmo viu diversos trens de carga trazendo blindados e tanques de volta de exercícios nas áreas fronteiriças. Rostov-do-Don é a sede do Distrito Militar Sul da Rússia. "Um dia eu parei no sinal da ferrovia e começaram a passar os tanques", disse.

Putin moveu uma peça vital na disputa em torno do desenho da segurança europeia na segunda (21), quando reconheceu as ditas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, lar para cerca de 4 milhões de pessoas, a maioria russa étnica, 800 mil delas com passaportes do vizinho maior. Alegou riscos de escalada das escaramuças dos últimos dias para uma ação militar que Kiev nega.

Com isso, e um discurso agressivo em que basicamente negou que a Ucrânia seja um Estado em si, ele colocou o Ocidente em xeque. Desde novembro, Putin tem concentrado tropas em exercícios militares em torno da Ucrânia —150 mil delas, pelo menos, segundo os EUA. Negou que irá invadir o país, mas após reconhecer os territórios rebeldes determinou que tropas russas o ocupem numa missão de "força de paz".

É algo que ocorre em outros pontos, como no encrave separatista russo da Transdnístria (Moldova), uma relíquia do desmonte da União Soviética em 1991, e nas duas áreas étnicas russas que se tornaram autônomas após a guerra entre Moscou e a Geórgia em 2008, a Abkházia e a Ossétia do Sul.

Na prática, é o que pode acontecer com o Donbass, desde 2014 autônomo na esteira da guerra civil fomentada pelo Kremlin após a anexação da península da Crimeia —que, além de historicamente território russo, é sede de sua valiosa Frota do Mar Negro.

"A Rússia pode intimidar Kiev a não mais agir militarmente no Donbass com a ação. Mas essa é praticamente a única vantagem do reconhecimento. As consequências negativas serão muitas e variadas", diz Andrei Kortunov, diretor do prestigioso Conselho de Assuntos Internacionais Russo, próximo do Kremlin.

Os impactos para as relações entre Moscou e Kiev podem ser severos. O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, disse que o país pode cortar laços diplomáticos com os russos e convocou um alto diplomata na Rússia para consultas. O Ministério das Relações Exteriores de Putin, por sua vez, afirmou não querer romper a relação, mas anunciou a retirada de pessoal diplomático do país.

O líder ucraniano, no entanto, minimizou a perspectiva de haver um conflito de larga escala, ao mesmo tempo em que disse estar pronto para introduzir lei marcial se isso acontecer.

No campo das retaliações, a sanção mais ameaçadora para Putin veio na forma da suspensão da certificação do gasoduto Nord Stream 2 pelo premiê alemão, Olaf Scholz. EUA, Reino Unido e União Europeia apresentaram punições de diferente graus, mas até aqui inócuas.

Já Pequim, aliada da Rússia, emitiu um comunicado discreto, pedindo contenção a todos os envolvidos na confusão. A integrante da Otan Turquia, por sua vez, condenou a ação de Moscou, mas se opôs à imposição de sanções.

Para Kiev, Washington e Bruxelas, a chegada de tais forças de paz já significa uma invasão russa, mas isso é só retórica. A real ação que todos temem teria outra natureza, mirando a capital ucraniana..

Com próximo passo, é preciso observar até onde os russos irão se posicionar, com bases militares, quando enfim chegaram ao Donbass. Ao longo de oito anos de disputa, há uma fronteira relativamente estabelecida de 430 km separando as repúblicas da Ucrânia ucraniana.

Putin espertamente escapou da pergunta sobre o tema. Sinais contraditórios foram dados por atores laterais. O senador Andrei Klimov, do Comitê de Assuntos Estrangeiros do Conselho da Federação (Câmara alta do Parlamento), disse que o plano russo só inclui as fronteiras atuais. "O resto está além do arcabouço de atividade legal", afirmou, dando um verniz legalista à decisão unilateral de Putin.

Já o chefe do comitê dos países ex-soviéticos da Duma (Câmara baixa do Parlamento), Leonid Kalachnikov, disse acreditar que a Rússia tem de acatar o pedido total dos separatistas em sua proclamação de independência de 2014.

Isso cabe a Putin. Nesta terça, a Duma aprovou o reconhecimento e os tratados de amizade entre Moscou, Lugansk e Donetsk, e o Conselho da Federação, a autorização para uso de tropas no exterior.

Apenas a realidade, contudo, dirá o que vai acontecer e como a Ucrânia reagirá. Se apenas transformar informalmente o Donbass numa região russa, sem anexação, Putin poderá prolongar indefinidamente o status disfuncional do Estado ucraniano, como fez com a Geórgia, prevenindo assim sua adesão à Otan e à União Europeia.

Se isso acontecer, será castigado por sanções que podem indispor seu regime com as elites russas, mas esta é uma questão para depois. Com os EUA e a Otan se negando a intervir militarmente, por temer uma guerra imprevisível, seu objetivo estratégico mais imediato estará conquistado.