ROSTOV-DO-DON, RÚSSIA (FOLHAPRESS) - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta quarta (23) que está disposto a negociar uma solução diplomática para a crise com o Ocidente, desde que respeitados os "interesses e a segurança" de seu país. Para ele, "inegociáveis".

"Ele fala isso porque estamos aguentando bem", diz o atendente de balcão Alexei [nome fictício], 28, após ouvir o discurso de Putin em um vídeo de TV estatal em seu celular. O presidente celebrava, com uma mensagem gravada, o Dia do Defensor da Pátria.

Alexei trabalha eventualmente em um símbolo dessa resiliência russa às sanções econômicas, que foram aumentadas pela enésima vez pelo presidente Joe Biden, países europeus, entre eles a Alemanha, e até Japão e Austrália devido à decisão de Putin de reconhecer as autoproclamadas repúblicas separatistas russas do leste da Ucrânia.

Trata-se da rede de padarias hipsters Keks, onipresente com 14 filiais em Rostov-do-Don, a capital da região que fica contígua às áreas rebeldes a oeste. Ela cresceu na esteira das primeiras sanções ocidentais, de 2014, quando Putin interveio no processo de ocidentalização da Ucrânia anexando a Crimeia e fomentando a guerra civil no leste.

"Foi uma época bem ruim, havia muita gente vindo para cá, e muitos aqui têm parentes em Donetsk e Lugansk", diz. Hoje, ainda não viu nenhum dos 60 mil refugiados do Donbass. Seja como for, a partir daí não se encontrava mais queijo francês e outros produtos europeus no mercado russo, e os comerciantes locais passaram a incentivar a produção local.

Assim, o croissant com salmão do Pacífico russo e cream cheese de Krasnodar (R$ 30, como se estivesse em uma rua de Pinheiros, São Paulo) da Keks é o famoso produto nacional.

Ainda é preciso ver o tamanho do estrago proposto por Biden, principalmente, acerca do que ele disse que seria um estrangulamento do financiamento de longo prazo da dívida russa, com a proibição de comércio de títulos do país no mercado secundário para operadores americanos.

A tensão seguiu na manhã desta quarta (23, madrugada no Brasil), com Kiev pedindo que seus 2,5 milhões de cidadãos morando na Rússia deixem o país vizinho, dado o clima de animosidade. Na noite anterior, a Rússia havia dito que retiraria diplomatas da Ucrânia, apesar de os países manterem ainda relações.

As Forças Armadas ucranianas também anunciaram a mobilização de seus reservistas, contingente que conta com cerca de 200 mil pessoas de 18 a 60 anos e ao qual se somaram centenas de civis ao longo dos últimos meses, com a escalada da tensão.

Um estado de emergência nacional de, a princípio, 30 dias, está para ser declarado no vizinho russo, segundo comentários de altos funcionários da segurança ucraniana proferidos nesta quarta.

Por ora, Putin mantém a iniciativa na crise, iniciada por ele com a mobilização de talvez 150 mil tropas em torno da Ucrânia desde novembro. Além de querer resolver o status das áreas russófonas do leste, que têm 800 mil de seus quase 4 milhões de habitantes com passaporte de Moscou, o presidente deitou à frente dos Estados Unidos seu cardápio de demandas.

As centrais: vetar Ucrânia, Geórgia, Moldova e outros países ex-soviéticos na Otan (aliança militar ocidental) e, presumivelmente, na União Europeia; recuar as forças ofensivas nos 14 países que já foram incorporados; negociar questões de segurança como posicionamento de mísseis e transparência de manobras bélicas.

Apenas o último tópico foi aceito por Biden e pela Otan, como seria previsível, levando ao impasse atual.

No discurso, Putin manteve o tom de desafio misturado com abertura, visando pressionar seu colega ucraniano, Volodomir Zelenski, que na noite de terça (22) havia feito o mesmo: prometido negociar e ao mesmo tempo mobilizando a população para o risco de uma invasão russa.

"Nosso país está sempre aberto a um diálogo aberto e honesto para encontrar soluções diplomáticas para os problemas mais complexos. Não obstante, os interesses e a segurança de nossos cidadãos são inegociáveis", afirmou.

No mais, Putin manteve a cantilena militarista, destacando que "continuaremos desenvolvendo sistemas avançados de defesa, incluindo do tipo hipersônico e baseado em novos princípios físicos, e expandiremos o uso de tecnologias digitais e inteligência artificial".

"Essas são as armas do futuro", disse, com razão. Hoje, o arsenal de mísseis hipersônicos (que voam a mais de cinco vezes a velocidade do som) russo é o mais disponível do mundo. A China está avançada em testes, mas não dispõe de sistemas operacionais, e os EUA está bastante atrás na corrida.

O discurso de Putin ocorre em um dos feriados sagrados do calendário de datas relativas à vitória soviética na Segunda Guerra Mundial, que, na Rússia, se chama Grande Guerra Patriótica e começou com a invasão nazista do então aliado comunistas, em 1941, dois anos depois de seu início na Europa.

O presidente reescreveu essa história de forma a acomodar as aberrações da ditadura soviética com o inegável heroísmo de um povo que perdeu 27 milhões de pessoas, quase 40% do total de caídos no mundo, no conflito. O fez com aparente sucesso: para o jovem atendente de balcão, a guerra "fez a Rússia ser o que é".

Ele, contudo, é cético acerca da necessidade de mais derramamento de sangue. Acredita que Putin vai limitar sua ação no Donbass, e não tentar conquistar Kiev como trombeteiam líderes ocidentais todo o dia. Há lógica nesse raciocínio, mas ele depende de fatores diversos: primeiro, o que presidente de fato quer. Segundo, se ele irá militarizar o Donbass, como parece previsível, até qual fronteira.

Se for dentro das atuais, até a União Europeia já sinalizou que a vida é assim mesmo. Se quiser recuperar as fronteiras históricas das duas províncias ucranianas, terá de comer território hoje nas mãos de Kiev. Aí, a invasão de fato vira uma ação de direito, violando no caso o internacional de forma mais acintosa.

Putin, contudo, conta com a inapetência ocidental até aqui de ir além de sanções econômicas. Talvez felizmente, dado que uma guerra em que ambos os lados têm armas nucleares nunca é uma boa ideia, menos para a Ucrânia.