SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O ano era 1968 e a revista era Realidade, da editora Abril. Um anúncio de página inteira na edição de junho estampava, em preto e branco, a foto de uma mãe buscando seus filhos na escola, com a frase: "E ainda dizem que mulher não entende de carro". Era o anúncio do Fusca, da Volkswagen.

A propaganda dizia que "tem tanta mulher com um Fusca" porque ele é fácil de dirigir, de manobrar, de estacionar e gasta pouca gasolina –e "as mulheres entendem de carro naquilo que mais interessa: na economia". "Afinal, entender de carburador, cilindrada etc. não é tudo na vida. E pode estar certo de que muitos homens que dirigem Volkswagem também pensam assim", dizia o texto.

Mais de 50 anos depois, a campanha "Pilotas - Restart", feita pela agência WMcCann para a General Motors, no lançamento do SUV Tracker, em agosto do ano passado, volta ao tema mulheres e carros para combater, com ironia, o bordão dos anos 1960 de que mulher é boa para "pilotar fogão".

"Como se isso fosse um problema", diz a chef de cozinha Paola Carosella, que estrela a campanha ao lado da pilota de aeronaves Helena Lacerda, da cirurgiã Andrea Ortega, da surfista profissional Yanca Costa, e da executiva de engenharia global da GM Fabiola Rogano. "Pilotar, a gente pilota o que a gente quiser", diz Paola, no filme.

Entender a mulher como um ser de múltiplos interesses, que inclui profissão, lazer, hobbies e esportes, ainda é o grande desafio da propaganda na segunda década do século 21, segundo especialistas em marketing e comportamento ouvidas pela reportagem.

As mulheres ainda são retratadas em muitos anúncios como um ser segmentado, tal qual nos anos 1960, preocupadas ou com a casa, ou com os filhos ou em ficar bonita. Ou o que é pior: seu corpo ainda é usado de maneira sexista, para chamar a atenção.

Na propaganda dos anos 1960, o carro só servia para elas buscarem as crianças na escola. Mas ainda hoje, as campanhas da indústria automobilística são maciçamente voltadas ao público masculino.

"Um terço dos interessados em SUVs no país são mulheres", diz Renata Bokel, vice-presidente de Estratégia da agência WMcCann no Brasil. "Elas demonstram mais interesse por esta categoria do que por qualquer outra, se sentem mais seguras neste modelo de carro", afirma.

Com essa informação em mãos na época do lançamento, a agência aproveitou para direcionar a campanha do Tracker, um SUV, para o público feminino. "Toda a campanha foi concebida e desenvolvida por mulheres, o que fez a diferença", diz a executiva.

"Também contamos com a consultoria da ONG Think Olga e tivemos o apoio do cliente, General Motors, que abraça a causa da equidade de gênero, até porque tem uma mulher no comando global", diz Renata, referindo-se à CEO da GM, Mary Barra.

Renata acredita, porém, que as marcas ainda não sabem lidar com o feminismo no século 21. "Há clientes que não estão preparados para adotar um discurso ativista e querem manter uma postura neutra. Brinco com eles que, se não querem levantar a bandeira da equidade de gênero, pelo menos não a derrubem, porque cada signo conta na propaganda."

A executiva da McCann lembra das campanhas em que a mulher espera o marido para o jantar já tendo preparado a comida e dado banho nas crianças. "Mas este é o mundo que queremos? Ou será que faz mais sentido colocar este casal chegando juntos em casa e dividindo as tarefas?", questiona.

Na opinião de Gisela Castro, professora do programa de pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), a propaganda retrata os costumes da sociedade, mas vai além.

"Todas as mídias interferem na formação de opinião, fazem pensar. A propaganda também participa do debate, reforçando estereótipos ou os colocando em questão", afirma.

Para Gisela, muitas empresas ainda são "retardatárias" ao não acompanhar a evolução dos papéis na sociedade e é preciso que as agências de comunicação levem aos clientes uma visão menos preconceituosa do mundo.

"É sempre mais fácil mudar discurso do que valores, mas os consumidores percebem essa incoerência ao longo do tempo. E as empresas perdem dinheiro", afirma.

A professora da ESPM lembra a campanha de carnaval de 2015 da Skol, marca de cerveja da Ambev, acusada de fazer apologia do estupro com o slogan "Esqueci o ‘não’ em casa".

"A marca recebeu uma enxurrada de críticas, retirou o slogan da campanha e procurou se retratar", diz Gisela. Três carnavais depois, em 2018, lançou uma campanha do que "desce redondo" e do que "desce quadrado" no Carnaval e, entre os exemplos do que não cai bem, apontou o assédio sexual.

A cerveja Itaipava, da Petrópolis, por sua vez, que há sete anos lançou a campanha "Verão", com a modelo Aline Campos como a mulher sensual de biquíni na praia que despertava desejos no público masculino, decidiu se despedir da personagem no final do ano passado.

Agora, o mote da campanha, assinada também pela WMcCann, é "a cerveja de todos os verões", com homens e mulheres desfrutando a temporada a beira-mar.

"Não vejo problema em colocar peito e bumbum de mulher na propaganda –se for para anunciar um creme para pele, por exemplo", diz a advogada, professora e escritora Ruth Manus. "Mas colocar em propaganda de cerveja é sexista, você condiciona as mulheres pela aparência", diz Ruth, que acaba de lançar o "Guia Prático Anti Machismo" (editora Sextante).

Seguindo esse raciocínio, lembra, a mulher acaba sendo relegada a uma "vida útil" muito curta, dos 30 aos 45 anos. "Antes dos 30, ela é jovem e inexperiente, e depois dos 45, é velha".

"As marcas vêm avançando, sim, na percepção da mulher como um ser com os mesmos direitos dos homens, mas ainda existem bolsões de mentalidade retrógrada na comunicação", diz Gisela.

"É preciso que a propaganda seja mais feminina, no sentido de ser mais multifacetada. Entendendo que a consumidora não quer ser só mãe, dona de casa ou mulher sexy –ela também é profissional, esportista, filha, amiga, tem um hobby. Ela é o que ela quiser, assim como o homem."

Para a psicóloga com mestrado em gênero Cecília Russo Troiano, diretora geral da Troiano Branding, consultoria de gestão de marcas, não é só o mercado de cervejas que ainda tem uma abordagem machista na propaganda.

"Muitas marcas fazem o patrocínio de competições esportivas, como automobilismo ou ciclismo, em que só homens competem", diz ela. "Que tipo de mensagem você está enviando para o público ao dar esse tipo de apoio? Ainda mais nos eventos em que uma mulher bonita, vestindo uma roupa sensual, vai entregar o troféu? Isso também é comunicação", diz ela.

Da mesma maneira, questiona Cecília, quando um banco coloca uma jovem atriz em uma roupa sexy para falar sobre investimentos, qual mensagem a instituição está transmitindo? "Parece dizer que a jovem não entende muito do assunto, já que sua função ali é embelezar, mas aquele banco entende e pode resolver para ela."

Para Cecília, é preciso aumentar o número de mulheres com poder de decisão, não só nas agências de publicidade, mas nas empresas. "Não por acaso, a lista das principais executivas do país se repete ano a ano", diz. "Precisamos de mais lideranças femininas, para que o olhar da mulher ajude a romper estereótipos, em vez de perpetuá-los", diz.

'MASCULINIDADE TÓXICA PRECISA SER COMBATIDA POR HOMENS E MULHERES'

Ruth Manus concorda que é preciso ampliar a presença feminina em todos os setores –mas ressalta que essa mulher em posição de comando precisa ser ela mesma, e não adotar uma postura masculina para ser respeitada.

"É comum que as mulheres gritem no trabalho, assim como os homens fazem, porque é um comportamento masculino aceito. Mas chorar no ambiente profissional não é aceito, porque é considerado fraqueza, algo do comportamento feminino", afirma.

"Isso faz parte de uma masculinidade tóxica que precisa ser combatida, porque faz mal tanto para mulheres quanto para homens. Todos nós somos, de alguma maneira, machistas, e é importante reconhecer o problema para combatê-lo".

Há alguns anos, a marca de absorventes femininos Always, da Procter & Gamble, lançou a campanha "Like a Girl" (como uma menina), que ganhou repercussão mundial. Mulheres adultas, um homem e um menino eram instados a imitar uma menina em diferentes atividades –correndo, lutando, jogando bola. E o faziam de uma maneira desajeitada, de propósito. A propaganda evidenciou o quanto a expressão "como uma menina" se tornou pejorativa na sociedade e impacta a autoestima das garotas.

"Conversei com muitas meninas e constatamos que a puberdade é um período especialmente complicado para elas, já que sua confiança despenca, muito mais do que a de meninos", afirmou à reportagem a engenheira Juliana Azevedo, presidente da P&G no Brasil, a primeira mulher a presidir a filial da companhia no país.

"Percebi o quanto isso pode ser restritivo, especialmente para mulheres jovens que estão formando sua visão de mundo e descobrindo o seu papel nele", afirma a executiva, lembrando que, até mesmo no período menstrual, a propaganda criou a imagem de uma mulher perfeita, conciliadora e impecável. "Isso sempre me incomodou", diz.

A P&G afirma ter trazido à tona a discussão sobre pobreza menstrual, uma situação que acomete 1 a cada 4 meninas no Brasil e pode impactar não só a sua autoestima, mas o seu desenvolvimento, uma vez que elas deixam de ir à escola quando estão menstruadas. Foram doados cerca de 4 milhões de unidades de absorventes, desde o ano passado até agora, a ações que combatem a pobreza menstrual.

A empresa assumiu outras bandeiras da equidade de gênero. Na P&G, os homens têm dois meses de licença paternidade (contra os cinco dias previstos na legislação brasileira). A licença pode ser tirada em até 18 meses, ou seja, eles podem ficar com a criança depois que a companheira volta a trabalhar.

Dona da marca Ariel, a companhia lançou, em 2019, a campanha "Compartilhar nos faz melhores", que vem sendo atualizada ano a ano. Nela, casais dividem as tarefas domésticas, como lavar roupa.

No mercado de produtos de beleza, a P&G procurou quebrar o mito do "cabelo perfeito", que ajudou a promover com a marca Pantene, quando contratou a modelo Gisele Bündchen como garota-propaganda.

"Aos poucos, nas pesquisas com consumidoras, vimos que elas não queriam mais o cabelo da Gisele como o ‘cabelo Pantene’, queriam ver o cabelo delas mesmas", afirma Isabella Zakzuk, diretora de operações de marcas e e-commerce da P&G Brasil.

Hoje a campanha de Pantene traz mulheres com cabelo cacheado, crespo, grisalho, homens de cabelo longo e mulheres de cabelos curtos. "O cabelo é uma forma de expressão e todas as formas precisam ser respeitadas", diz ela.