SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A revolução genômica, que anda modificando boa parte do que achávamos que sabíamos sobre a história humana, tem afetado os estudos sobre o povoamento do continente americano de forma paradoxal. De um lado, as análises de DNA parecem ter resolvido de vez algumas controvérsias que já duram séculos, mas também acabaram criando uma série de novos enigmas.

Tanto os consensos quanto os mistérios estão explicados com muito didatismo e equilíbrio no livro "Origin: A Genetic History of the Americas" ("Origem: Uma História Genética das Américas", ainda sem versão brasileira), escrito pela americana Jennifer Raff, do Departamento de Antropologia da Universidade do Kansas (EUA).

Do lado consensual, os indícios genômicos e arqueológicos apresentados pela pesquisadora deixam claro que os primeiros habitantes do nosso continente descendem majoritariamente de grupos que, algumas dezenas de milhares de anos atrás, viviam na região da Sibéria.

Parte desses grupos conseguiu atravessar do Velho para o Novo Mundo passando pelas regiões frígidas do Ártico, provavelmente depois de viver durante muitas gerações na chamada Beríngia. Esse nome designa as regiões em torno das terras hoje submersas no estreito de Bering (entre a Sibéria e o Alasca), mas que estavam acima do nível do mar durante a Era do Gelo, quando boa parte da água do planeta estava "sequestrada" em geleiras.

A Beríngia, então formada por uma estepe que abrigava grandes mamíferos como mamutes e rinocerontes-lanosos, era imensa. Calcula-se que a ponte de terra entre os continentes pode ter alcançado 1.000 km de largura e 1,6 milhão de quilômetros quadrados de área.

Muitos pesquisadores acreditam que a distribuição das geleiras no continente e nos oceanos impediu que os moradores da Beríngia conseguissem alcançar territórios ao sul do Alasca durante o chamado Último Máximo Glacial, fase da Era do Gelo que terminou 19 mil anos atrás.

Depois disso, eles teriam iniciado uma expansão relativamente rápida por via marítima, primeiro descendo pela costa do oceano Pacífico e depois interiorizando sua ocupação do continente, defende Raff em seu livro.

Isso explicaria, entre outras coisas, a semelhança genética relativamente alta entre uma criança que morreu no estado americano de Montana há 13 mil anos e pessoas sepultadas há 10 mil anos na região de Lagoa Santa e Pedro Leopoldo (MG) --a jornada rápida teria permitido esse tipo de difusão populacional.

"Mas, como eu sempre vou dizer para cada pergunta que você me fizer, precisamos de mais dados", brincou a autora em entrevista à reportagem por videoconferência. "No caso da América do Norte, por exemplo, quase não temos DNA de esqueletos antigos com essa idade --estou trabalhando nisso, aliás!"

É nesse ponto, porém, que começam os mistérios. Diversas populações indígenas sul-americanas também carregam, em seu DNA, sinais modestos da contribuição ancestral de grupos enigmáticos designados como "população Y" --do termo tupi "Ypikuéra", ou "antepassado".

As marcas genômicas da população Y revelam um parentesco distante, mas significativo, com povos do Pacífico cuja aparência é bem distinta da dos atuais indígenas, como os aborígines australianos e os nativos da Nova Guiné.

"Isso pode ser um indício da presença dessa população no continente americano antes do Último Máximo Glacial, o que seria fascinante. Ou pode estar ligado a diferentes subpopulações dentro da Beríngia, uma das quais corresponderia a essa herança da população Y, o que também parece plausível. No momento, não tenho uma hipótese preferida a esse respeito, até porque não faço esse tipo de modelagem populacional. Sou uma cientista de bancada", diz a pesquisadora americana.

"Estou tentando manter a mente aberta porque acho que a nossa área já sofreu muito com essa coisa de ficar aferrado a ideias preconcebidas."

Mais intrigante ainda é o fato de que os crânios dos antigos habitantes de Lagoa Santa, mais importante sítio arqueológico brasileiro quando o assunto é entender o povoamento do continente, têm formatos que lembram o dos aborígines do Pacífico, como demonstram trabalhos clássicos do bioantropólogo Walter Neves, da USP.

No entanto, os testes de DNA mostraram que não há correlação entre a presença dos genes da população Y e o formato dos crânios. "Talvez sejam características que tenham ligação com a ancestralidade a nível local, mas, para mim, tudo indica que a morfologia craniana não vai nos ajudar a resolver essas questões."

O livro da pesquisadora também se destaca entre as obras que abordam essa área de pesquisa por enfrentar com franqueza o legado de colonialismo e preconceito racial que ronda o estudo da pré-história indígena desde o século 18. Raff defende que é preciso levar em conta a relação dos atuais povos nativos com seus ancestrais antes de qualquer estudo genômico com esqueletos antigos.

De fato, diversos estudos de DNA têm revelado que, mesmo quando há distâncias temporais de vários milhares de anos, é comum que um indivíduo pré-histórico tenha parentesco com os indígenas que ainda vivem na região onde ele foi sepultado. Nesses casos, é legítimo que grupos étnicos atuais peçam a repatriação dos restos mortais e um novo sepultamento, afirma ela, mesmo que com isso não seja mais possível estudar aquele indivíduo no futuro.

E quanto a estudos genômicos sobre coisas como comportamento humano ou inteligência envolvendo povos indígenas? Haveria maneira de realizar esse tipo de trabalho sem cair em problemas éticos nem reforçar estereótipos raciais? "Eu acho que pesquisas como essas teriam de partir das necessidades desses povos, e com um tremendo arcabouço ético para evitar abusos", diz ela. "Não é o tipo de coisa que eu faria. Não acho que devamos proibir esse tipo de pesquisa, mas é preciso muito cuidado."

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A Genetic History of the Americas

Autora: Jennifer Raff

Editora: Twelve

Preço: R$ 55,67 (369 págs)