Primeiro embaixador negro do Brasil enfrentou resistência na imprensa e no Itamaraty
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quinta-feira, 18 de novembro de 2021
MATHEUS ROCHA
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Quando foi indicado em 1961 para assumir a embaixada do Brasil em Gana, Raymundo Souza Dantas se tornou o primeiro embaixador negro do Brasil, quebrando um paradigma que já durava 138 anos, desde que o Ministério das Relações Exteriores fora criado.
A indicação, porém, fez dele alvo de ataques da imprensa e de setores do Itamaraty. "Consideravam que ele não era capacitado para o cargo, o que gerou muitas críticas", explica Fábio Koifman, autor de uma biografia sobre Souza Dantas e professor de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
Segundo o pesquisador, críticos diziam à época que o embaixador era inexpressivo e que, por vir de uma carreira de jornalista, não tinha experiência diplomática. Ele destaca, porém, que outros indicados no mesmo período sem essa bagagem --caso do escritor Rubem Braga e do pintor Cícero Dias, designados para as representações no Marrocos e no Senegal-- não foram atacados como Souza Dantas.
"Mas não eram esses os pontos que realmente o incomodavam, mas sim o fato de ele ser negro, nordestino e de origem humilde", diz Koifman. "Alguns textos tinham conotação racista e o atacavam pessoalmente."
Nascido em Estância (SE), cidade a 67 quilômetros de Aracaju, filho de uma lavadeira, Souza Dantas começou a se alfabetizar com 18 anos. Após se mudar para o Rio de Janeiro, trabalhou como gari e vendedor de maçãs até chegar ao jornalismo, profissão em que se notabilizou.
Segundo o pesquisador, parte do Itamaraty apoiou a indicação do sergipano, mas servidores da instituição vazaram aos jornais informações distorcidas para prejudicá-lo. Uma delas dizia que Kwame Nkrumah (1909-1972), então presidente de Gana, estava contrariado com a indicação de um negro para a embaixada e que, por isso, atrasava o envio do agrément --no jargão diplomático, consulta a um país que pode vir a receber um novo embaixador.
Koifman sustenta, porém, que o documento demorou a ser enviado por questões internas de Gana, que à época tinha só quatro anos como país independente. "O governo ainda estava se estruturando", diz. Para reforçar o argumento, o pesquisador afirma que Rubem Braga enfrentou problema semelhantes. "O agrément dele chegou muito depois, mas ninguém falou nada."
Ao desembarcar em Gana, os percalços de Souza Dantas só se avolumaram. "Meu pai teve muitas dificuldades. Ele se sentiu abandonado pelo Itamaraty", diz Roberto Souza Dantas, 75, filho do embaixador. Assim que chegaram, ele diz que um diplomata se recusou a desocupar a residência oficial para ceder lugar ao sergipano, que precisou ficar cerca de dois meses em hotéis.
Ao se instalarem na chancelaria, encontraram um imóvel em condições tão precárias que, quando receberam um convidado, o hóspede teve de dormir no chão. "Ele falava das dificuldades, se achava isolado. Comentou que era uma personalidade exótica no corpo diplomático", conta Roberto.
O livro que Souza Dantas escreveu sobre o período recebeu o título de "África Difícil". Em um trecho da obra, ele afirma: "Meu propósito é apenas registrar que não passa de drama o que todos consideram conquista: ser embaixador".
Em outra passagem, sobre os estudos do filho, acrescenta: "Que Deus o ajude e que lhe tire da cabeça a ideia de ingressar na carreira diplomática. Sei que sofrerá por ser negro".
A indicação de Souza Dantas à embaixada em Gana não significou de imediato uma melhora na representação dos negros no Itamaraty. Hoje, oficialmente, a pasta não tem informações sobre o perfil racial dos diplomatas, mas levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indica que, em 2020, 11,7% desses profissionais se declaravam negros, enquanto 58,2% diziam ser brancos --e o quadro tem uma lacuna grande, dado que 28,2% não informaram a classificação racial.
Só quase 50 anos depois de Souza Dantas o Brasil teve seu primeiro embaixador de carreira negro. Em 2010, Benedicto Fonseca Filho, então com 47 anos, 25 deles no corpo diplomático, foi promovido a embaixador para chefiar o departamento de Ciência e Tecnologia do Itamaraty.
"A promoção foi não apenas uma alegria e uma honra, mas também a realização de um sonho que começou nos anos 1970", diz ele, em entrevista por email. Naqueles tempos, Fonseca Filho se mudou com a família para Praga acompanhando o pai, que era agente de portaria do Itamaraty.
O diplomata diz que, ao ser indicado como embaixador, não encontrou o ambiente hostil com o qual o antigo representante em Gana se deparou. Para ele, mudanças culturais e políticas no país, além do fato de ele já ter longa carreira no órgão, ajudam a explicar a diferença de tratamento. "Creio que a conjunção desses fatores contribuiu para que a acolhida ao meu nome tenha se dado em ambiente de maior normalidade do que o enfrentado pelo embaixador Souza Dantas."
Fonseca Filho estima que, quando entrou no Itamaraty, havia menos de dez pessoas que se declaravam negras, cenário que mudou ao longo dos anos. "Hoje, o órgão conta com crescente número de negros e negras diplomatas, cotistas ou não, via de regra dotados de excepcionais qualidades pessoais e profissionais."
O Itamaraty tem, desde 2002, um programa de ação afirmativa que concede bolsas para custear os estudos de candidatos negros. Das 789 pessoas que entraram no Itamaraty entre 2002 e 2014, 20 foram negros contemplados pelas bolsas (2,5% do total). Já entre 2014 e 2020, ingressaram no corpo diplomático 127 pessoas, das quais 27 por meio das cotas raciais (elevando a proporção para 21,3%).