Prevenção de pandemia é 20 vezes mais barata do que custo para enfrentamento
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sexta-feira, 04 de fevereiro de 2022
REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - O mundo não está se preparando para barrar futuras pandemias em sua origem, um erro que não faz sentido nem do ponto de vista econômico: sairia 20 vezes mais barato optar pela prevenção do que arcar com os custos, em vidas e dinheiro, trazidos por doenças emergentes.
O cálculo, feito por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, leva em conta o que é preciso investir para que as doenças infecciosas do futuro sejam identificadas e combatidas antes de deixarem sua principal fonte: os animais silvestres e, em medida bem menor, os domésticos.
De fato, como mostram os responsáveis por um novo estudo sobre o tema, que acaba de sair na revista especializada Science Advances, praticamente todas as pandemias desde o começo do século 20 surgiram como zoonoses.
Ou seja, doenças que saltaram de hospedeiros animais --principalmente os selvagens-- para o organismo humano. É o caso da gripe espanhola de 1918-1919, da Aids e, muito provavelmente, da Covid-19 (embora ainda não tenha sido descartada de todo a hipótese de que o vírus, originalmente vindo de um animal, possa ter "escapado" de um laboratório).
Isso significa que a chamada prevenção primária de pandemias precisa ser feita mapeando a diversidade de patógenos (causadores de doenças), em especial vírus, que afetam animais silvestres.
Além disso, é preciso que esse mapeamento seja acompanhado de medidas capazes de mitigar os principais fatores que têm colocado a população humana em contato cada vez mais intenso com os hospedeiros de futuras doenças pandêmicas.
Entre esses fatores se destacam o desmatamento, o avanço das fronteiras agrícolas e o tráfico de animais silvestres (nesse último caso, a criação comercial dessas espécies em cativeiro também contribui para o problema).
A questão é que, mesmo depois do advento da Covid-19, alguns dos principais organismos internacionais, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Banco Mundial, falam apenas do investimento em vacinas, medicamentos e testes diagnósticos para enfrentar ameaças pandêmicas do futuro. Esses investimentos são fundamentais, mas podem acabar sendo o equivalente a chorar pelo leite derramado se não houver um foco maior nos processos que levam um patógeno a emergir como ameaça.
"A resposta a pandemias está, em grande parte, nas mãos de cientistas, biomédicos e médicos extremamente capazes, mas que podem não estar familiarizados com os meios de prevenção primária", diz a demógrafa brasileira Marcia Castro, pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard (EUA), coautora do estudo e colunista do jornal Folha de S.Paulo.
"A prevenção sempre é melhor e mais barata do que a cura. E o retorno do investimento em prevenção vai além dos benefícios para a saúde da população, já que também beneficia o meio ambiente e o crescimento econômico. O que fizemos é quantificar esse argumento", explica ela.
Usando dados sobre surtos de zoonoses (e as pandemias que podem ser derivadas delas) ao longo do último século, Castro e seus colegas estimaram o custo anual de vidas perdidas e danos à economia causados por essas doenças. (Embora possa parecer estranho estimar quanto "custa" a morte de uma pessoa, trata-se de algo quantificado rotineiramente por agências econômicas e governos.)
Na conta mais conservadora (ou seja, menos "gastadeira"), o custo dessas mortes seria de US$ 350 bilhões anuais. Já a perda média do PIB (Produto Interno Bruno, equivalente, grosso modo, à soma da riqueza produzida por uma sociedade) ligada a essas moléstias por ano seria de US$ 212 bilhões.
E quanto custaria para enfrentar o problema na origem, antes da chegada de novos vírus ao organismo humano?
Nessa conta, os pesquisadores incluíram investimentos no acompanhamento de animais silvestres em busca de patógenos potencialmente perigosos, o controle e monitoramento estritos do tráfico desses animais (hoje uma das principais fontes de renda do crime organizado) e programas para reduzir o desmatamento, principalmente em países tropicais como o Brasil.
Somadas, essas ações custariam US$ 20 bilhões por ano --menos de um vigésimo dos custos totais das doenças zoonóticas, ou um décimo do impacto que elas têm sobre o PIB global.
O mais importante, diz a equipe, é a observação e o controle muito mais cuidadosos das interações entre seres humanos e animais silvestres, e das forças econômicas e sociais que estão levando ao aumento desses contatos. É por isso que não faz muito sentido achar que a Covid-19 teria sido "criada em laboratório".
"Os dados mostram claramente que a grande maioria das doenças virais emergentes não surgiram em laboratórios de pesquisa, mas da transmissão acidental de animais para o homem", diz Mariana Vale, pesquisadora do Departamento de Ecologia da UFRJ e também coautora do estudo.
"Acidentes de laboratório podem acontecer, claro, mas a probabilidade é muito pequena se comparada à associada aos milhares de pessoas que entram em contato diariamente com animais silvestres nas florestas tropicais por causa da comercialização para os mercados de pets, carne de caça e medicina tradicional. Só no estado do Amazonas são 10,7 mil toneladas de carne de caça comercializada por ano, segundo um estudo de 2020", exemplifica ela.
Aliás, a dimensão desse mercado e a magnitude do desmatamento no Brasil deixa no ar uma dúvida assustadora: por que uma pandemia ainda não começou aqui? "Matéria-prima", a rigor, não falta.
Macacos, roedores e morcegos são os principais reservatórios de vírus zoonóticos. No caso desses três grupos de animais, a biodiversidade brasileira está entre as maiores do mundo. E a diversidade de vírus costuma acompanhar a de animais.
"Acho que [não aconteceu ainda] porque Deus é brasileiro", brinca a pesquisadora.
"Como a Amazônia ainda tem cerca de 80% de suas florestas, isso diminui a probabilidade de emergência e também de propagação de novas doenças. É bastante possível que vírus tenham passado de animais selvagens para o homem, causando mortes, mas que nunca chegaram a se espalhar porque as vítimas viviam em locais isolados. Mas, à medida que o desmatamento vai aumentando, claro, a probabilidade de emergência de uma nova doença aumenta também."
Outro possível elemento é o fato de que os vírus dos morcegos sul-americanos parecem ser transmitidos com menos facilidade para seres humanos do que os que existem em morcegos do Velho Mundo --e, como se sabe, os patógenos virais dos mamíferos voadores estão ligados a uma série de doenças emergentes, como o ebola e a própria Covid-19.