SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Não vamos nos render [...] Nossa maior motivação é defender nossas casas, nossas cidades, nossas famílias, nossas crianças", disse na quinta-feira (3) o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, casado há 26 anos e pai de três filhos.

Enquanto dava entrevista à Reuters, as tropas russas avançavam para tomar a maior usina nuclear da Europa. Na véspera, em vídeo postado nas redes sociais, Klitschko tinha mandado um recado: "Kiev resiste e resistirá".

Antes mesmo de o presidente russo Vladimir Putin determinar a invasão da Ucrânia, Klitschko começou a organizar os 3 milhões de habitantes de Kiev. No começo de fevereiro, em entrevista à AFP, ele lembrou que serviu o Exército —o prefeito, aliás, foi um dos convidados do casamento, em meio à guerra, dos soldados Valeri e Lesia, ambos de Kiev, ocorrido neste domingo (6).

E, quando os russos deram início à guerra, Klitschko disse que pegaria em armas e lutaria no front ao lado de seu irmão Wladimir, que se apresentou para o combate. "Não tenho outra opção", disse o prefeito.

Klitschko, 50, nascido em Belovodskoie, no Quirguistão, está à frente da capital ucraniana desde 2014. Foi eleito depois de ter se tornado um dos líderes dos protestos anti-Rússia de quase uma década atrás e menos de um ano após anunciar o fim de uma das carreiras mais vitoriosas e heterodoxas da história do boxe.

Com 2,01m e atuando na divisão dos pesos pesados (acima de 91 kg), Klitschko atropelou seus adversários desde a primeira vez que pisou num ringue como profissional, em 1996.

Venceu por nocaute 24 lutas seguidas, derrotando quase todos os oponentes em, no máximo, dois rounds. Na 25ª, em junho de 1999, disputou o título da Organização Mundial de Boxe. O resultado foi o padrão: vitória por nocaute no segundo round.

Quando se aposentou, o gigante ucraniano ostentava um cartel de 47 lutas, com 45 vitórias (41 por nocaute) e 3 títulos mundiais, somando mais de 7 anos com o cinturão. Sofreu apenas duas derrotas, ambas por contusão. Nunca foi derrubado e fez jus ao apelido, Dr. Punho de Ferro.

Mas Vitali Klitschko não reinou sozinho. Seu irmão Wladimir, 5 anos mais novo e 3 centímetros mais baixo, acumulou 12 anos como campeão mundial e ficou 11 anos invicto. Apelido? Dr. Martelo de Aço.

O "Dr." não é gratuito. Em 2000, já campeão mundial de boxe, Vitali defendeu sua tese de doutorado em ciências do esporte na Universidade de Kiev e se tornou o primeiro peso-pesado profissional a alcançar esse nível acadêmico. Wladimir seguiu os passos pouco depois.

Os dois brutamontes também são poliglotas (ucraniano, russo, alemão, inglês, um pouco de francês) e adoram jogar xadrez.

Eles podem se enfrentar nos tabuleiros por diletantismo, mas jamais se confrontaram com luvas. De 2008 a 2013, dominaram os ringues e dividiram entre si os principais títulos. Se um dos Klitschkos competia em uma organização, o outro disputava as demais.

Em 2000, quando Vitali perdeu o cinturão para o americano Chris Byrd, Wladimir foi o primeiro desafiante do novo campeão e retomou o título para a família.

Eles aprenderam desde cedo a cuidar um do outro. O pai, ex-general da Força Aérea Soviética, ensinou que irmãos devem se apoiar mutuamente e sempre saber como o outro está. Quando Vitali subia ao ringue, Wladimir estava do lado de fora, com a toalha. E vice-versa.

Quando Vitali decidiu entrar para a política, Wladimir a princípio foi contra, mas nem por isso deixou de ajudar.

O mais velho dos irmãos tinha se impressionado com Arnold Schwarzenegger, cujo pôster ficava em seu quarto na infância. Se um fisiculturista pode entrar para a política, por que não um pugilista?

A porta de entrada foi a Revolução Laranja de 2004-2005, uma série de manifestações contra supostas fraudes eleitorais na Ucrânia. Os Klitschkos se envolveram em graus distintos.

Vitali se tornou assessor de Viktor Iushchenko, oposicionista que assumiu a Presidência em 2005. Wladimir aproveitou que tinha feito uma ponta no campeão de bilheteria "Onze Homens e um Segredo" e coletou declarações de apoio de celebridades.

A partir daí, Vitali Klitschko dividiu-se entre o boxe e a política. Tentou ser prefeito de Kiev em 2006, mas ficou em segundo lugar. Conseguiu, porém, um assento no Conselho Municipal, espécie de Câmara de Vereadores.

Quatro anos depois, enquanto defendia o título mundial, fundou a Aliança Democrática Ucraniana pela Reforma, partido que defende a aproximação com a Europa.

Klitschko soube aproveitar sua fama no Ocidente para acumular capital político para a agremiação, cujo acrônimo em ucraniano, Udar, significa "soco".

Durante os protestos anti-Rússia de 2014, usou sua notoriedade para se encontrar com líderes dos EUA e de diversos países da Europa. Chegou a se lançar candidato a presidente, mas desistiu a poucos meses da eleição e disputou a prefeitura da capital.

"A situação pede consolidação e unificação de esforços", disse à época em convenção do seu partido. "Isso só poderá ser alcançado se não dividirmos os votos entre candidatos democráticos."

Apoiou o magnata Petro Poroshenko, que venceu a disputa com 54% dos votos.

Atitude incomum na política, mas não para Vitali Klitschko, que nunca coube muito bem em estereótipos.