BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A exigência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de turbinar gastos em ano eleitoral e a manobra do governo para driblar o teto de gastos causou crise no governo e debandada no time do ministro Paulo Guedes (Economia).

Quatro secretários da equipe econômica pediram demissão nesta quinta-feira (21) por discordarem das decisões. Pediram para deixar o governo dois dos principais nomes do núcleo da pasta, o que comanda as contas públicas.

O maior representante da área, abaixo de Guedes, é o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal. Ele, assim como o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt —subordinado a Funchal—, pediram exoneração dos cargos.

Em nota, o Ministério da Economia afirmou que também deixarão os cargos a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo.​

O anúncio ocorreu horas após a formalização de uma proposta do governo para driblar o teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas públicas federais.

A medida abre margem no Orçamento em ano eleitoral, inclusive para turbinar emendas parlamentares, recursos direcionados pelos deputados e senadores para suas bases eleitorais.

Alinhado à ala política do Palácio do Planalto e ao centrão, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou uma série de gastos às vésperas de ano eleitoral. Em 2022, ele buscará a reeleição.

O imbróglio está em torno de garantir R$ 400 para o Auxílio Brasil. O programa substituirá o Bolsa Família, uma marca do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que hoje lidera a corrida presidencial.

O Ministério da Economia atribuiu os pedidos de demissão dos quatro secretários a "razões de ordem pessoal". Segundo o órgão, as solicitações foram feitas de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade.

A reportagem, no entanto, apurou que Funchal afirmou à sua equipe que deixa o governo por questões de princípio. O secretário demissionário já havia dito que não chancelaria medidas que subvertessem a ordem fiscal.

"A decisão de ambos é de ordem pessoal. Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país", disse o ministério.

A pasta não informou nomes dos substitutos para os cargos.

A debandada é reflexo de uma crise aberta no governo entre a equipe econômica e a ala política. Pressionado pelo centrão e interesses eleitorais, Bolsonaro exigiu o pagamento de R$ 400 a beneficiários de programas sociais até o fim de 2022, ano de eleições.

O contorno às regras fiscais foi a saída encontrada pelo governo para viabilizar a medida. O time de Guedes era contra e tentou negociar uma solução sem alterações no teto, mas foi vencido.

O governo e aliados no Congresso inseriram nesta quinta na PEC (proposta de emenda à Constituição) que adia o pagamento de precatórios uma mudança na regra de correção do teto de gastos, que na prática expande o limite para as despesas.

O conjunto das alterações previstas cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, de acordo com o relator da proposta, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

Antes mesmo do anúncio da saída dos secretários, o mercado encerrou o dia com reação negativa forte à proposta do governo.

A Bolsa de Valores brasileira fechou em queda de 2,75%. O dólar subiu 1,88%, a R$ 5,6670, e os juros futuros aumentaram os prêmios, com o DI para janeiro de 2025 em alta de quase 60 pontos-base, a 11,48% ao ano.

A demissão dos secretários foi usada como argumento pela oposição, que tentou barrar o avanço da PEC na Câmara. Segundo partidos de oposição, a debandada mostrou que a proposta não é consenso nem sequer no governo.

Funchal e Bittencourt eram responsáveis pelo comando dos cofres do governo federal e tinham confiança de Guedes. O ministro os nomeou para os cargos há cerca de seis meses em uma dança das cadeiras deflagrada com a saída do então secretário especial de Fazenda Waldery Rodrigues.

Os dois estavam entre os maiores defensores do teto de gastos dentro do ministério e apontavam a regra como a âncora para a manutenção da confiança no governo e a estabilidade de indicadores como juros e inflação.

No início da semana, quando a ideia de driblar o teto foi aventada, interlocutores do governo já haviam alertado que a concretização de uma medida desse tipo poderia provocar uma debandada na equipe econômica.

Segundo membros do governo comentaram à reportagem, Guedes havia tido no começo da semana uma reunião com Bolsonaro e outros ministros na qual foi exigido um pagamento de R$ 400 para o Auxílio Brasil, tendo sido traçada a estratégia de parte dos pagamentos serem feitos fora do teto de gastos.

O titular da Economia tentou rechaçar a ideia, mas foi voto vencido.

De acordo com os relatos, depois que Guedes apresentou a ideia à própria equipe, houve uma forte reação com ameaças de demissão.

Pela falta de consenso e pela necessidade de mais tempo para a elaboração da proposta, o anúncio foi suspenso. O plano passou a ser adaptado com ajuda da própria equipe econômica e desencadeou a proposta alternativa que expande o teto de gastos.

Mesmo assim, logo após a proposta ter sido apresentada, os dois secretários anunciaram a saída.

No Ministério da Economia, Funchal foi diretor de programa e se encarregava sobretudo de medidas voltadas aos estados. Ele foi promovido a secretário do Tesouro no lugar de Mansueto Almeida.

Depois, ele subiu mais um degrau na hierarquia da pasta, assumindo o comando da Secretaria Especial de Fazenda (hoje denominada secretaria especial do Tesouro e Orçamento).

"Parabéns ao secretário do Tesouro e ao secretário especial de Fazenda por não aceitarem participar da maior lambança fiscal da história das contas públicas no Brasil", afirmou no Twitter Felipe Salto, diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado).

Servidor de carreira do Tesouro, Bittencourt ​​foi assessor especial de Guedes antes de ocupar o comando da secretaria. Ele foi alçado ao posto após a saída de Waldery Rodrigues, ex-secretário especial de Fazenda.

Bittencourt havia sido também secretário especial adjunto de Fazenda e passou por outros cargos no ministério, como o de diretor de programa. Tem passagens também pelo governo do Rio Grande do Sul.

Em agosto de 2020, Guedes teve que lidar com outro movimento classificado por ele próprio como debandada. Na ocasião, os então secretários especiais Salim Mattar (Desestatização) e Paulo Uebel (Desburocratização) decidiram deixar os cargos. A razão das saídas foi a demora do governo em implementar reformas.

ENTENDA A MUDANÇA NO TETO DE GASTOS

Pelo plano apresentado para mudar a regra fiscal, a Constituição será alterada para que o teto seja corrigido anualmente pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulado em 12 meses de janeiro a dezembro.

Atualmente, o período usado como base para o limite anual considera o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Isso cria um descompasso nas contas, porque despesas previdenciárias e de programas sociais são corrigidas com base na inflação calculada no encerramento do ano.

Com a alteração, seriam sincronizados os períodos de correção do teto e das despesas indexadas do governo.

Só com a mudança na correção do teto, Motta afirma que seria aberto um espaço de mais de R$ 39 bilhões em relação ao previsto hoje na proposta de Orçamento de 2022.

Segundo ele, a folga no Orçamento subiria para R$ 83 bilhões com a flexibilização para o pagamento dos precatórios —dívidas do governo reconhecidas pela Justiça, que serão em parte jogadas para anos seguintes.

Motta afirmou que os reflexos da crise da Covid-19 justificam as mudanças no teto de gastos. "Estamos antecipando a reavaliação do teto, que poderia ser feita em 2026, para 2021, porque tivemos uma pandemia que mais do que justifica a antecipação dessa reanálise", disse o relator.

Segundo ele, a nova versão da PEC, que agora prevê a mudança no teto de gastos, também deverá permitir elevar de R$ 4 bilhões para R$ 11 bilhões a verba para compra de vacinas contra a Covid-19.

A conta do espaço a ser aberto no teto de gastos com as mudanças pode ser mais alta do que a apresentada pelo relator.

Pelos cálculos do economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado que monitora as contas públicas), a correção do teto deve expandir o teto em 2022 em R$ 47 bilhões, em relação ao previsto sob a regra atual.

Segundo ele, somado ao impacto provocado pela limitação de precatórios, o espaço aberto nas contas de 2022 deve chegar a R$ 94,4 bilhões, valor maior do que o estimado pelo relator.

"Se essa proposta que está sendo aventada avançar, será uma lambança ampla e irrestrita na regra do jogo. Pode-se discordar do teto de gastos ou de qualquer outra regra fiscal, mas isso nada tem a ver com técnica. Mudar retroativamente as contas poderá ser a maior contabilidade criativa de que se tem notícia", disse.

A mudança na regra do teto de gastos começaria a valer já neste ano, de acordo com a nova versão da PEC apresentada nesta quinta. Um dispositivo determina que a correção em 2021 poderá liberar um limite de até R$ 15 bilhões em despesas ligadas à vacinação contra a Covid-19, além de "ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico".

LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA.

"Nota à imprensa

O secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, pediram exoneração de seus cargos ao ministro da Economia, Paulo Guedes, nesta quinta-feira (21/10).

A decisão de ambos é de ordem pessoal. Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país.

A secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo, também pediram exoneração de seus cargos, por razões pessoais.

Os pedidos foram feitos de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade de todos os compromissos, tanto da Seto quanto da STN."