BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - A crise jurídica e política entre Polônia e União Europeia não deve levar ao 'polexit' --a saída do país do bloco europeu--, mas há riscos de desfechos mais graves, segundo especialistas em política externa.

No último dia 7, o Tribunal Constitucional da Polônia, a mais alta corte do país, decidiu que a Constituição polonesa se sobrepõe a trechos de tratados do bloco, permitindo que o governo polonês descumpra decisões do Tribunal de Justiça da UE (TJUE).

O confronto traz riscos políticos, econômicos e geopolíticos e exige resposta contundente, de acordo com analistas de quatro diferentes países que participaram de seminário promovido pelo Conselho Europeu de Relações Internacionais (ECFR) na sexta (15).

Um "polexit" é visto como improvável pelos analistas por vários motivos, entre os quais o fato de que a maior parte dos poloneses é a favor da integração com a UE, e a atual conjuntura interna, na qual a coalizão do partido governante, Lei e Justiça (PiS), tem uma margem estreita de maioria no Parlamento.

"Não existe a hipótese de que o Parlamento aprove uma saída do bloco. Um governo que tentasse isso seria derrubado no mesmo instante", diz Piotr Buras, diretor da seção polonesa do ECFR.

Para o analista polonês, muito mais perigosa que uma saída da Polônia é uma "permanência suja", na qual um membro do bloco pode questionar e ameaçar os fundamentos da UE impunemente.

A crise atual, afirma Buras, não é legal, mas política: "Não se trata de uma disputa teórica sobre se a Justiça Europeia pode ter a última palavra, mas de saber se o massacre da independência do Judiciário, que já está acontecendo na prática, será tolerado".

"A verdadeira pergunta é: 'Podemos ter na Europa um país em que o Judiciário seja totalmente controlado pelo partido governante, em que o ministro da Justiça seja também o procurador-geral e juízes possam ser processados, suspensos ou punidos por consultar o TJUE?'."

Segundo ele, "esse deve ser o alvo fundamental de qualquer resposta", sob risco de uma onda de autocratização em vários países-membros do bloco.

Shahin Vallée, chefe do Programa de Geo-Economia do Conselho Alemão de Relações Exteriores (DGAP), concorda com o argumento de que o ponto central da crise não é o veredito da corte polonesa, mas a própria situação do Judiciário na Polônia.

Desde que chegou ao poder, em 2015, o partido nacionalista Lei e Justiça (PiS) promoveu uma reforma que elevou seu controle sobre a Suprema Corte e criou uma câmara disciplinar para juízes da Suprema Corte, com poderes para tirar a imunidade, suspender e reduzir salários.

As novas regras foram votadas em 2019 e implantadas no começo de 2020. Em março de 2021, a Comissão Europeia decidiu processar a Polônia no TJUE por comprometer a independência do Judiciário, um dos pilares dos tratados do bloco.

O TJUE ordenou em setembro que a Polônia recuasse da câmara disciplinar, mas o governo do PiS ignorou o veredito, recorrendo então a seu próprio tribunal para que o declarasse contraditório com a Constituição nacional.

Para Vallée, a reação deve ser não contra o veredito, mas contra o próprio Tribunal Constitucional: "É preciso deixar claro que não se reconhece essa corte, que já fere as regras da UE".

Mas os analistas temem que a crise fortaleça grupos eurocéticos e partidos mais à direita, não só na Polônia.

Entre os países da Europa Central, a Hungria já deu apoio explícito ao governo polonês, lembra o eslovaco Milan Nic, analista sênior do Centro Alfred von Oppenheim para Estudos de Política Europeia (AOZ).

"Orbán, embora ousado nos enfrentamentos políticos, sempre foi cuidadoso em confrontos legais. Agora, vai explorar o quanto puder a fratura imposta pela Polônia, porque não tem nada a perder", disse Nic.

Segundo ele, a crise atual "é uma séria ameaça à coesão e integridade da UE e ao mercado comum" e deverá ser discutida pelos líderes dos 27 membros do bloco na reunião do Conselho Europeu marcada para a próxima semana.

"O que essa crise mostra é que autocracias estão sendo capazes de se estabelecer mesmo sob os tratados da UE, e as fronteiras do Estado de Direito estão sendo ameaçadas", diz ele.

Segundo Nic, é um "desafio político enorme" para a União Europeia mostrar de forma clara que os países pós-soviéticos não podem continuar recebendo benefícios do bloco --como os chamados "fundos de coesão", que deveriam promover a democratização-- sem se submeter às outras regras.

Se não, diz ele, "é apenas uma questão de tempo até que o avanço autocrático piore muito, um cenário apavorante para as nações orientais".

Por outro lado, qualquer reação europeia precisa ser cautelosa, diz o eslovaco, para não empurrar seus atuais membros para os braços da Rússia: "Se perder a conexão com a Europa oriental, o bloco pode se defrontar com graves consequências geopolíticas, principalmente agora que rediscute o apoio militar americano e a Otan".

Nem sempre uma reação dura é a melhor estratégia, porém, afirmou Caroline de Gruyter, analista de relações internacionais do jornal holandês NRC Handelsblad.

Para ela, declarações críticas ou advertências da Comissão Europeia dão margem ao governo polonês para acusar a UE de interferência em assuntos internos e na soberania nacional.

Buras concorda: "Os líderes dos Estados-membros devem dar um apoio firme ao TJUE. Se o conflito se resumir a uma disputa entre Comissão Europeia e governo polonês, a mensagem é péssima: a tecnocracia tentando interferir em governantes eleitos.

Já Vallée, que foi o assessor econômico do Ministério das Finanças da França e assessor econômico da presidência do Conselho Europeu, defende uma reação vigorosa. "Se acreditamos que a ordem legal do bloco está sendo desafiada, precisamos reagir com todos os instrumentos disponíveis."

Além da via judicial, isso inclui, no limite, retaliações políticas, como a perda de direito de voto em reuniões do Conselho Europeu, e econômicas, como o bloqueio de fundos do orçamento da UE.

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ENTENDA A CRISE

O que deflagrou o conflito Polônia x UE?

A mais recente crise foi provocada por uma decisão do Tribunal Constitucional da Polônia no dia 7 de outubro, rejeitando a supremacia do direito europeu sobre o nacional. Foi tomada depois que o TJUE determinou que a câmara disciplinar de juízes criada pelo governo polonês era incompatível com o direito europeu, por minar a independência do Judiciário. A Polônia manteve o órgão funcionando e recorreu à sua corte.

A Justiça polonesa perdeu mesmo a independência?

A reforma do Judiciário, votada em 2019 e implantada no começo do ano passado, aumentou muito o controle da Justiça pelo partido que governa a Polônia, o Lei e Justiça (PiS). Um órgão dominado pelo PiS nomeia os juízes no país e uma câmara disciplinar responsável por processá-los, suspendê-los e puni-los.

Qual a resposta da Comissão?

A Comissão, Poder Executivo da União Europeia, diz que as decisões do Tribunal de Justiça da UE precisam ser obedecidas por todas as autoridades dos Estados-membros, incluindo os tribunais nacionais. Estados que aderirem à UE subscrevem os tratados do bloco e devem cumpri-los integralmente.

O que a Comissão Europeia pode fazer?

Politicamente, pode aumentar a pressão com críticas públicas e advertências, mas analistas consideram que esse caminho apenas aumentaria a oposição de grupos eurocéticos.

Juridicamente, há vários mecanismos:

- Procedimentos de infração: um processo legal iniciado quando a Comissão considera que um país violou a legislação europeia. Se chegar ao TJUE, o caso pode resultar em multas diárias até o fim das infrações, verbas que poderiam ser retidas pela Comissão de repasses devidos ao país. Além da disputa sobre a reforma do Judiciário, que já dura mais de um ano, o governo da Polônia está sob investigação por ataques a direitos LGBTQIA+ e à liberdade de imprensa no país;

- Quadro do Estado de Direito: um processo de três estágios que a Comissão desencadeia quando julga que um país ameaça o Estado de Direito. O objetivo é evitar a aplicação do artigo 7º, com consequências mais graves. Apresentado no ano passado, o mecanismo ainda não foi detalhado;

- Artigo 7º: o mais grave procedimento desencadeado quando a Comissão julga que um país ameaça o Estado de Direito exige votação no Parlamento e no Conselho e pode levar à suspensão do direito de voto nas decisões da UE.

Economicamente, a Comissão já está usando como forma de pressão o bloqueio de 58 bilhões de euros (R$ 370 bilhões) para a reconstrução pós-pandemia. Planos de recuperação emergencial de quase todos os 27 membros já foram aprovados, mas as verbas de Polônia e Hungria ainda não saíram, justamente por disputas relacionadas a Estado de Direito.

Outra medida mais dura seria a paralisação no pagamento de fundos do orçamento da UE --no caso da Polônia, verbas destinadas justamente a fortalecer a democracia.

A crise pode levar ao "polexit" --a saída da Polônia do bloco europeu, como no brexit?

É muito improvável, já que a maior parte da população polonesa é contra um divórcio, e o PiS não tem no momento uma maioria forte no Parlamento que lhe permitisse aprovar uma saída do bloco.

Tribunais na Alemanha e na França também não contestaram o direito europeu?

Sim, embora juristas apontem que há diferenças importantes, principalmente em relação à independência do Judiciário.

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional decidiu que o Banco Central Europeu (BCE) ultrapassou o seu mandato ao aprovar programas de compra de títulos e rejeitou uma decisão do TJUE que havia aprovado as diretivas do banco. O governo alemão, porém, não implantou a decisão de sua própria corte.

Na França, no começo deste ano, o Conselho de Estado francês (o mais alto tribunal administrativo do país) autorizou o governo a manter a coleta de dados individuais na internet, embora o TJUE tenha decidido que isso viola as regras de privacidade do bloco. Assim como no caso polonês, o argumento francês foi que o governo da França é obrigado por sua Constituição a defender seus cidadãos.

Por que a decisão do tribunal polonês provocou mais reações?

Mais do que o veredito em si, a preocupação da Comissão Europeia e de analistas é com o controle que o governo polonês tem do Judiciário no país. A decisão da corte polonesa foi provocada pelo próprio governo, que se recusa a cumprir uma decisão do TJUE justamente sobre pontos da reforma polonesa que, segundo o tribunal europeu, ameaçam a independência dos juízes.