SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A ação policial que terminou com a retirada à força de cerca de 6.000 pessoas que viviam no terreno conhecido como Pinheirinho, em São José dos Campos (91 km de SP), completa dez anos neste sábado (22).

Passada uma década daquela manhã de domingo, a área desocupada segue vazia desde então, encoberta por mato, enquanto a maioria absoluta das famílias desalojadas dá vida a um bairro novo, construído nos limites da maior e mais rica cidade do Vale do Paraíba.

Pinheirinho dos Palmares fica a 16 km da ocupação que foi retirada do mapa por ordem judicial e forças de segurança em 22 de janeiro de 2012. O conjunto habitacional foi construído sobre uma fazenda e era ainda zona rural à margem da rodovia Carvalho Pinto, pouco antes de ser dividido em 1.461 lotes destinados a quem perdeu tudo.

Distante da região central de São José dos Campos, a área do novo Pinheirinho foi a opção possível encontrada pelas lideranças do movimento por moradia, diante dos altos preços cobrados em outras regiões. "Visitamos 56 terrenos na época. Mais para o centro, era muito caro. Conseguimos aqui por R$ 36 o metro quadrado. Então foi possível fazer as casas", conta Valdir Martins, 64, o Marrom.

Apesar das cicatrizes deixadas pela reintegração de posse, em muitos casos não apenas no tecido social, a entrega das chaves em dezembro de 2016 é vista como símbolo de vitória por quem viveu de perto a luta por moradia. "O Pinheirinho é a única desocupação do Brasil em que mais de 95% das famílias conseguiram as casas", conta Marrom.

Pelas casas, as famílias pagam entre R$ 25 e R$ 80 por mês --em um financiamento de até dez anos. Todas foram entregues seguindo um mesmo padrão, mas já é possível notar na grande maioria os detalhes trazidos por cada morador. Pode ser a pintura refeita, um portão novo ou um cômodo recém-construído, agregado ao imóvel original.

Quem anda pelas ruas do Pinheirinho dos Palmares percebe que tudo por ali ainda é, de fato, muito recente. Seja o asfalto, as guias, os mercadinhos, as oficinas, as mudas das árvores que ainda não fazem tanta sombra ou as memórias da correria para fugir dos cerca de 2.000 policiais militares e centenas de guardas-civis que cercaram o antigo Pinheirinho há dez anos, impondo a retirada.

Marrom conta que, no novo conjunto habitacional, as vizinhanças foram mantidas tais quais como estabelecidas no antigo Pinheirinho, como forma de manter os laços e evitar estresse na adaptação entre as famílias.

Para a maioria, a caminhada foi longa até a casa própria. A dona de casa Sonia Helena Carvalho, 53, por exemplo, chegou ao antigo Pinheirinho no primeiro mês da ocupação e viveu por lá durante oito anos, até a reintegração de posse. No início, assim como outras famílias, vivia em um minúsculo barraquinho. "Não dava nem para colocar um guarda-roupa. Trabalhando para caramba é que consegui construir [a casa de alvenaria]", afirma. "A maior frustração foi batalhar tanto e ver a máquina destruir minha casa em poucos segundos", diz.

Sonia lutou, progrediu e até abriu um comércio, com o qual sustentava a família. Mas havia uma ordem judicial no meio do caminho. "Tinha uma bonbonnière e estou lutando para abrir aqui também", diz. Depois surgiu o coronavírus. "Meu negócio é mexer com os doces. Estava tudo certo, mas então veio a pandemia. Agora estou batalhando de novo", conta.

Entre tantas lutas, Sonia perdeu um filho de 22 anos, morto em um atropelamento em 2017, seis meses depois de se mudarem para o Pinheirinho dos Palmares. Novamente, a vida a obrigou a tomar frente de outra causa, dessa vez para ver a Justiça ser feita com a prisão do atropelador, o que aconteceu.

Além disso, viu a rua da nova casa receber o nome do filho, Lucas Mário Carvalho Vieira. "Colocaram o nome dele, porque era um guerreiro também. Lutava, ia para protestos. A vida dele também era o Pinheirinho", diz.

Da rua com nome do filho, Sonia não pensa em se mudar nunca mais. Nos fundos do terreno, já levanta um terraço e deseja até construir uma piscina. "Hoje, agradeço a Deus por termos nossa casinha. Vejo muita gente reclamando, mas, para mim, é boa demais", diz.

Nem todos, porém, acostumaram-se a viver tão distantes da região central. A comerciante Maria Lúcia dos Santos, 55, até tentou, mas está entre aqueles que voltaram a morar ao redor da área desocupada, mesmo pagando aluguel. "Já que iria dar as casas, por que a prefeitura não fez aqui mesmo? O povo já estava no terreno, era só medir os pedaços", afirma. "Botou lá naquela lonjura", completa.

Maria Lúcia tinha um brechó na área devolvida à força à massa falida da Selecta, do megaespeculador Naji Nahas. É a mesma atividade que ela mantém hoje na avenida que passa em frente ao terreno, numa lojinha de roupas usadas. O movimento, porém, caiu bastante, sem a presença dos vizinhos que davam vida ao Pinheirinho. Ao olhar para a área desocupada há dez anos, não esconde o desalento. "O que virou aí? Nada. Só mato."

De fato, agora é ermo o terreno de 1,3 milhão de metros quadrados onde vivia a multidão desalojada por ordem judicial em meio a bombas, helicópteros e viaturas barulhentas naquele fim de semana que marcou a história do movimento de luta por moradia no Brasil.

Não restaram nem os escombros das casas destruídas por retroescavadeiras. Nem sinal de que aquele era já um bairro formado, com mais de 80 pontos comerciais, sete templos religiosos, áreas de lazer e cerca de 1.200 imóveis de alvenaria, fora os barracos, segundo levantamento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Se a Canudos de Antonio Conselheiro, símbolo de levante popular debelado no início da República (1897), foi encoberta pelas águas do açude de Cocorobó (BA), construído em 1969 durante a ditadura militar, no Pinheirinho do Campos dos Alemães, em São José dos Campos, é o mato que faz as vezes de apagar o cenário.

Em meio ao terreno vazio, apenas um casebre que serve de base aos seguranças do local. Nas bordas, não mais que duas ou três barracas coladas à cerca, usadas por dependentes químicos.

O defensor público Jairo Salvador de Souza acompanha os desdobramentos da reintegração de posse e não vê sentido na ação que terminou em 2012 com a retirada violenta das famílias. "Pagou-se auxílio aluguel durante um longo período, por três anos. Um valor imenso. Qual o sentido disso? O terreno está lá do mesmo jeito. Sem utilização nenhuma, com impostos atrasados", afirma.

Souza não desmerece a conquista da moradia no Pinheirinho dos Palmares, mas faz ressalvas. "Eles agora têm as casas, mas perderam a cidade", diz. "A fonte de renda foi suprimida, os laços sociais. Essas consequências a gente só vai perceber ao longo do tempo", completa.

O defensor cuida da ação judicial movida por 1.100 famílias que perderam tudo durante a reintegração de posse daquele 22 de janeiro. Após idas e vindas, uma audiência está marcada para 15 de março. "A massa falida e o Estado fazem de tudo para protelar uma decisão."

Souza aponta a violência da ação policial e os danos materiais como desumanidades. "Uma vitória militar, um desastre social", resume.

A reportagem procurou as diversas partes que estiveram envolvidas de alguma forma na reintegração de posse em 2012 e todas afirmaram que agiram dentro da legalidade.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afirmou que o caso segue em aberto e que o último andamento é um despacho desta quinta-feira (20) no processo em primeiro grau solicitando manifestação da Defensoria Pública sobre laudo pericial.

A reportagem pediu entrevista com a juíza Márcia Loureiro, responsável pela ordem de reintegração de posse. O TJ afirmou que a lei da magistratura a impede de conceder entrevista sobre casos em andamento. Atualmente, ela é juíza titular da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da mesma comarca.

"A juíza informa que a ordem de reintegração de posse foi cumprida nos exatos termos do que determinava a lei, seguindo com rigor os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório", disse, em nota.

"Às famílias foi dado amplo amparo, no dia da reintegração e após, com disponibilidade de alojamentos pela Prefeitura, disponibilidade de armazenamento dos bens às custas da massa falida e, posteriormente, pagamento de auxílio aluguel [disponibilizados pela Prefeitura e pelo Estado] até que condomínio legalizado foi entregue", concluiu.

O Governo do Estado de São Paulo disse "que não fará juízo de valor em relação a um episódio ocorrido há dez anos" e cita, entre outros, o investimento de R$ 140,2 milhões na construção das casas do Pinheirinho dos Palmares. Já a Secretaria de Estado da Segurança Pública disse que a Justiça Comum e a Justiça Militar receberam da Corregedoria, apurado à época, o Inquérito Policial Militar em sua integralidade e finalizado.

A Prefeitura de São José dos Campos disse que todas as famílias recebem apoio e proteção social de diversas formas. Também diz que disponibilizou para os moradores do Pinheirinho toda a infraestrutura, com creche, escola, unidade de saúde, transporte público e obras viárias na região. A viagem entre o novo bairro e o centro varia entre 50 minutos e uma hora, segundo a prefeitura.

Questionada sobre o que tem feito para reaver os impostos devidos pelo proprietário do terreno, bem como as destinações que pretende dar ao local, a prefeitura disse que "há um processo de falência que corre na Vara da Fazenda Federal, onde estão sendo levantados os valores de créditos devidos para o pagamento de dívidas tributárias e com outros credores".

Governador à época, Geraldo Alckmin (sem partido) citou todo o processo judicial que levou à ordem de reintegração de posse e afirmou, por meio de sua assessoria, que "como chefe do Poder Executivo do estado à época", "se limitou à cessão do efetivo requisitado pelo Tribunal de Justiça, como era seu dever constitucional, pois ele não tinha, como nenhum governador tem, poder para suspender ou contrariar uma ordem judicial". Também citou ações sociais e de moradia realizadas em favor das famílias.

Procurado por meio de advogados, Naji Nahas não se manifestou até a publicação desta reportagem.