SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pessoas com síndrome de Down estão cada vez mais ocupando espaços sociais e exercendo cidadania. O serviço público, contudo, ainda patina na inclusão efetiva desses brasileiros que não conseguem ocupar cargos em administrações governamentais, em nenhuma esfera, mesmo amparados pela Constituição.

Levantamento feito por grupos de apoio a pessoas com Down espalhados pelo Brasil e compartilhado com a Folha não encontrou servidores públicos concursados com deficiência intelectual, incluindo Downs, em nenhum Estado. As portas de entrada nas gestões de governo, em geral, são apenas temporárias e improvisadas, com apoio de organizações filantrópicas ou assistenciais por meio de convênios e parcerias.

Questionado sobre o tema, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) reagiu à apuração e informou que vai editar ato, nos próximos dias, recomendando a todos os Tribunais Regionais do Trabalho a "adoção de ações e medidas de fiscalização de empresas terceirizadas para que, no cumprimento das cotas de contratação de pessoas com deficiência, incluam pessoas com síndrome de Down".

O tribunal, que reconheceu o quadro atual de exclusão, inclusive em sua estrutura, afirmou ainda que "abrirá suas portas ao diálogo com entidades que abordam a causa para avaliar novas iniciativas que ampliem as ações de inclusão".

Nesta segunda-feira (21), é celebrado o Dia Internacional da Síndrome de Down e uma das demandas mais urgentes dos grupos de pessoas com deficiência intelectual é justamente mais acesso ao emprego. Atualmente, isso tem acontecido com mais efetividade em programas segmentados tanto no setor público quanto no privado, que estão espalhados pelo Brasil.

O cardiologista José Francisco Kerr Saraiva, presidente da Fundação Síndrome de Down de Campinas, explica que essas pessoas podem conquistar empregos com autonomia monitorada para haver equidade. O médico lembra que apesar de os concursos públicos não incluírem pessoas com deficiências intelectuais, existe o olhar mais contemporâneo para a inclusão do Down.

"É uma luta constante para promover igualdade. Antes essas pessoas nasciam e morriam, muitas vezes, sem desenvolver autonomia, apesar de terem assistência. Era a inclusão excludente. Não havia integração com a sociedade."

Saraiva prossegue. "Essas ações de inclusão são recentes e têm contribuído para o ingresso dessas pessoas no mercado de trabalho. Mas para essa inclusão chegar ao serviço público, ainda há um longo caminho a se trilhar."

Em Campinas, uma parceria entre a Sanasa (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento), a Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) da cidade e o Departamento de Parques e Jardins, da Prefeitura de Campinas (SP)-, permitiu a contratação de três pessoas com síndrome de Down para trabalhar no viveiro municipal da cidade.

Luan Almeida, 20, Adenilson Ferreira dos Santos, 24, e João Marcos Gonçalves Ribeiro, 25, ao lado de outras 25 pessoas com deficiência intelectual, são responsáveis pelo cultivo de mudas de flores que, depois, são espalhadas por parques, canteiros centrais e bosques de Campinas. Cada um deles recebe um salário mínimo por mês (R$ 1.212).

"Aprendi bastante nesses quatro anos, desenvolvi muitas habilidades. Já estou craque em jardinagem, tanto que também cuido até das plantas lá de casa. É bom ter responsabilidades, gosto dessa rotina de trabalho", afirma Adenilson.

Trabalhar e ter uma rotina ajuda as pessoas com deficiência a ter noção tanto dos seus direitos como dos seus deveres, segundo a fisioterapeuta e pedagoga Ana Paula D. Binoto, 43, coordenadora do programa Treinamento Profissional de Campinas, da Apae.

"O objetivo é que eles adquiram habilidades específicas para sua inclusão no mercado de trabalho. Eles ganham independência, autonomia e empoderamento, mas, em especial, igualdade de oportunidades."

O desembargador Alvaro Nôga, presidente da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região), de São Paulo, reconhece que falta um mecanismo que possibilite o ingresso de pessoas com deficiência intelectual no serviço público.

"Não existe, ainda, norma para exigir prova acessível para eles ficarem em pé de igualdade com os demais competidores, em todos os cargos, o que considero uma injustiça. É como se pessoas com deficiência intelectual ficassem fora da festa", afirma.

Atualmente, ele lembra, só é possível ingressar no serviço público por meio de concurso. "Temos uma preocupação em não tratar esse público de forma diferenciada, mas, sim, com respeito. É preciso compreender que para haver igualdade, nesses casos, precisa haver flexibilização."

A advogada Daniela Kovács, funcionária do TRT-SP e membro da Comissão de Acessibilidade do órgão, que tem uma deficiência visual, afirma que o concurso público é uma barreira para pessoas com deficiência intelectual.

"A prova exige várias habilidades como forma de raciocínio, e muitas vezes isso pode prejudicar alguém com Down, por exemplo, que precisa de uma comunicação simplificada."

A Constituição de 1988 já previa a inclusão de pessoas com deficiência nos serviços públicos, mas de maneira genérica. A lei 8.112/90 estabelece o percentual máximo de 20% para reserva de cargos públicos, mas os órgãos têm reservado o mínimo de 5%, segundo Daniela.

A legislação deve ser mais clara e específica, segundo a presidente da Associação Reviver Down do Paraná, Regiane Gimenez Mendonça, que tem uma filha de 26 anos com a síndrome. Ela explica que nas empresas privadas, as cotas são preenchidas por pessoas com deficiência física, e não intelectual.

"Para cumprir a cota, contratam pessoas que se adaptam mais às vagas e acabam rejeitando deficientes intelectuais, que precisam que os cargos sejam adaptados a eles, que é o emprego apoiado. Toda pessoa é capaz de aprender e de trabalhar", diz.

Ela afirma que concursos públicos poderiam, por exemplo, oferecer vagas administrativas a esse público, em trabalhos como auxiliar, escrituração e até mesmo professores.

O empreendedor social Maurício Carvalho concorda. Ele questiona, ainda, a falta de cargos inclusivos disponíveis no setor público para deficientes intelectuais. Ele, que completa 59 anos justamente em 21 de março, é pai do Rafael, 25, que tem síndrome de Down e foi o primeiro nessa condição a completar a corrida de São Silvestre, em São Paulo.

"Meu filho é palestrante e comunicativo, poderia atuar em diversas funções no setor público e privado. É preciso sempre respeitar a vontade do Down. Muitos querem entrar para o serviço público porque é tradição de família, outros simplesmente querem entrar pela porta da frente por meio de concurso. Isso não é favor, é um dever do Estado."

De acordo com o presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, Antonio Carlos Sestaro, apesar dos avanços nos últimos anos para a inclusão desse público no mercado de trabalho, o setor público ainda descumpre a Lei das Cotas.

"O governo não faz sua parte, já que não há concursado com Down trabalhando no setor público. A inclusão de uma prova mais acessível, com linguagem simplificada para garantir a interpretação de quem tem a síndrome, e até mais tempo para realizar o exame, é o que vai garantir a igualdade. Isso pode ser o primeiro passo para avançarmos nessa questão de acessibilidade do Down."

O desembargador Nôga declara que "há a expectativa que as coisas mudem. Dentro da Justiça do Trabalho existe essa intenção. É provável que venha a acontecer de deficientes intelectuais competirem por uma vaga no serviço público por meio de uma prova em concurso. Pequenas lutas viram verdadeiras batalhas. Então, estamos trabalhando para isso, de maneira que eles sejam incluídos, não só na área judicial."

Estimativas de entidades ligadas à causa da deficiência intelectual são de que o Brasil tem cerca de 300 mil pessoas com síndrome de Down.