SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ter uma carreira bem-sucedida requer investimento e devoção. Ter filhos, também. É disso que se trata o impasse que tem confrontado milhões de mulheres ao longo das últimas cinco décadas, pelo menos, com impactos importantes em seus rendimentos e em sua autonomia.

Dado que a divisão do trabalho de cuidado costuma recair mais sobre mulheres do que homens, o resultado é um desequilíbrio dentro dos casais heteroafetivos quanto à disponibilidade de cada um para carreira e, portanto, para mais oportunidades de melhor remuneração.

Para a historiadora da economia Claudia Goldin, essa dinâmica é a chave para entender a persistente diferença salarial entre homens e mulheres com formação e experiência semelhantes nos EUA.

"Mulheres com responsabilidades de cuidado precisam de trabalhos flexíveis para que estejam disponíveis para as demandas de crianças e idosos", diz a professora de Harvard à reportagem. "Enquanto isso, homens ocupam desproporcionalmente vagas que pagam mais porque exigem dedicação total e horas extras, o que é incompatível com a rotina familiar de crianças que precisam jantar às 18h, por exemplo."

Em seu novo livro, "Career and Family: Women's Century-Long Journey Toward Equity", a professora da Universidade Harvard (EUA) analisa uma enormidade de dados sobre trabalho e remuneração e evidencia os esforços empenhados por mulheres com formação superior para contornar os conflitos entre carreira e família, que podem ser alterados a partir da experiência da pandemia.

Segundo Goldin, a pandemia e a adoção de um modelo de trabalho remoto, além de evidenciar a importância das atividades de cuidado com filhos, com a casa e com pessoas idosas, "provaram que arranjos flexíveis podem ser muito produtivos ao mesmo tempo que as demandas de trabalhos mais exigentes diminuíram".

Para a economista, essa mudança tende a "alterar os preços relativos de trabalhos flexíveis, mais ocupados por mulheres, em relação aos trabalhos mais demandantes demandantes, mais ocupados por homens", com impacto na persistente diferença salarial entre os gêneros.

Como exemplo dessas mudanças, ela aponta que grandes aquisições do mundo corporativo continuaram ocorrendo durante a pandemia sem que executivos tivessem de cruzar o mundo em viagens de avião para consolidá-los presencialmente durante a crise sanitária global.

"Descobrimos que podemos trabalhar de casa, em uma cidade, enquanto nosso emprego fica em outro lugar centenas de quilômetros longe dali", diz Goldin. "Poder assinar contratos sem ter de fazer longos deslocamentos também barateou os custos dessas operações e a demanda dessas posições."

"Antes, se uma mulher com filhos recebesse uma oferta de trabalho em que ela tivesse de voar para Zurique a cada 15 dias, ela provavelmente teria de recusar essa posição porque ela não é compatível com sua vida familiar, ainda que fosse o tipo de cargo mais bem remunerado e mais demandado. E esse tipo de posição, com a pandemia, se tornou mais flexível."

Sabe-se que a pandemia afetou o mercado de trabalho, com especial prejuízo para mulheres e para aquelas do mercado informal. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a taxa de empregos destruídos globalmente na pandemia foi de, respectivamente, 4,2% no caso das mulheres e 3% no dos homens. A recuperação dessas vagas também tem sido mais lenta para mulheres do que para homens no Brasil.

Ao centrar sua pesquisa em mulheres com ensino superior a partir dos anos 1900, quando os EUA já contavam universidades às dezenas enquanto o Brasil ainda não tinha nenhuma (a primeira foi fundada em 1920), Goldin restringe as observações a um universo muito americano e privilegiado.

Na primeira década do século passado, universidades nos EUA já formavam mulheres que, segundo o livro, salvo raríssimas exceções, dedicavam suas vidas à carreira.

A partir da Segunda Guerra (1939-1945), o "baby boom" fez mulheres adiarem as carreiras para serem mães e cuidarem dos filhos primeiro, fatores que mais tarde se inverteram.

Segundo o Pew Research, nos anos 2010 mulheres com formação superior superaram, em proporção, os homens com os mesmos anos de estudo. Hoje, 39% das norte-americanas com mais de 25 anos passaram pela universidade, ante 37% dos homens.

"Mulheres de sucessivas gerações sabiam que, para ter uma carreira, precisavam adiar qualquer projeto familiar. E isso teve impacto na média de idade com que as mulheres se casam, que continua a subir, assim como na idade mediana com que elas têm o primeiro filho", diz Goldin. Isso quando foi possível a essas profissionais ter filhos.

A economista explica que a encruzilhada entre trabalho e maternidade derrubou taxas de natalidade nos EUA nos anos 1970. Quando tecnologias de fertilização permitiram às mulheres ter filhos depois dos 40 anos, com carreiras já mais consolidadas, outros fatores passaram a impactar na diferença salarial entre os gêneros.

Reduzidos fatores que antes mantinham mulheres em desvantagem no mercado, tais como pior formação, discriminação contra trabalhadoras que engravidam ou mesmo escolhas ocupacionais menos valorizadas, sua persistência até os dias de hoje requer outras explicações, que ela aponta estarem, principalmente, no advento dos filhos.

Career and Family: Women's Century-Long Journey Toward Equity

Claudia Goldin, Princeton University Press (344 págs.), R$ 170,19 e R$ 154,33 (ebook)