RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Na televisão, Beyoncé, Ciara e Alicia Keys. Nos jalecos e na decoração, estampas africanas. Nas paredes, quadros com fotografias de pessoas negras. É assim o ambiente da clínica odontológica Ayo, palavra que na língua iorubá quer dizer felicidade. O espaço funciona no centro do Rio de Janeiro, com uma equipe inteiramente formada por profissionais negros --da recepcionista aos dentistas.

Inaugurada em fevereiro de 2021, a Ayo é uma das iniciativas no campo da saúde que surgiram nos últimos anos, lideradas por profissionais negros, que propõem um atendimento humanizado e acolhedor para outras pessoas negras.

Isso quer dizer que, nesses espaços, as consequências do racismo na saúde física e mental do paciente são observadas, entendidas e levadas em consideração durante o tratamento.

Em geral, pessoas negras que buscam clínicas afrocentradas já carregam traumas ou desconfortos de atendimentos anteriores. Mas não é só o paciente que procura acolhimento e representatividade nesses espaços: o profissional também. A Ayo, por exemplo, nasceu como resposta a uma grave violência racial sofrida pelo dentista Victor Hugo Daniel de Paula, 31.

No ano passado, Victor entrou na recepção de outra clínica onde trabalha e foi surpreendido por uma mulher branca, que o olhou e disse: "Nossa, se um negão desses me chama, saio correndo de medo". Em seguida, a mulher afirmou que não imaginava que ele fosse dentista. "Achei que fosse funcionário lá de trás."

Na hora, desprevenido, Victor não conseguiu falar nada. Nos meses seguintes, entrou em depressão. Mas, depois, sua resposta para esse episódio criminoso foi cercar-se de outras pessoas negras e repensar como daria seguimento a sua carreira. Foi aí que procurou o dentista Alexandre Severo, 33, seu ex-colega de faculdade.

Dessa troca e da necessidade de construir um ambiente de trabalho confortável para pessoas negras em carreiras elitizadas surgiu a Ayo.

"A gente pensava em construir um espaço que fosse confortável para pessoas que se formaram, se dedicaram muito e começaram a perceber que o desafio vai muito além de ser bom. Tem que provar que é bom o tempo inteiro, porque as pessoas, na maior parte das vezes, não têm confiança. A gente foge inteiramente do estereótipo", afirma Victor.

Os sócios dizem que, desde que inauguraram a clínica, a agenda sempre esteve cheia, o que indica uma necessidade bilateral por um espaço afrocentrado.

"A gente começou a perceber uma outra demanda, de pessoas pretas, que precisam de um cuidado específico da escuta, de entender seu histórico sem ser discriminado. Muitas pessoas chegam aqui com muitos traumas, de questionamentos do tipo 'como você deixou chegar a esse ponto?'", afirma Victor.

O mito de que pessoas negras são mais resistentes à dor é uma das formas de racismo que frequentemente aparecem nos consultórios dentários. "O dentista fala 'não, você é forte, você vai aguentar", diz Alexandre.

Ele também cita uma pesquisa da Universidade Federal de Pelotas, de 2018, que indicou que a cor da pele dos pacientes influencia no tratamento dentário ofertado.

Nesse estudo, um grupo de dentistas foi confrontado com duas imagens, de um negro e de um branco, com o mesmo problema bucal. O resultado mostrou que o paciente negro foi direcionado para tratamentos mais simples e baratos.

Depois de um primeiro ano de sucesso, a Ayo vai se expandir. Em janeiro, passará a contar com atendimento médico, psicológico e nutricional, coordenado pela médica Juliana Peres, 30. Mulher de Alexandre, Juliana também chegou ao projeto após vivenciar racismo no seu lugar de trabalho.

"Eu posso estar de jaleco, estetoscópio, escrito médica, que sempre tem alguém achando que eu sou a técnica de enfermagem ou pedindo para eu limpar a sala", diz.

Hoje usando o cabelo crespo, ela relata que também já foi vítima de comentários racistas a respeito dos fios. "Muitas de nós temos cabelo black, trança. Eu já cansei de ouvir 'ah, mas de cabelo liso você fica tão mais arrumada'", afirma.

Por isso, Juliana diz que os jalecos com estampa africana são também uma forma de ressaltar que a clínica é um espaço seguro para experienciar a própria cultura. "A gente brinca falando que quem quiser vir de turbante pode vir. Você pode ser quem você é, não precisa se esconder, não precisa alisar seu cabelo, botar uma touca que não cabe na sua trança."

Coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra da UnB (Universidade de Brasília), Marjorie Chaves afirma que o aumento de pessoas negras buscando serviços afrocentrados nasce da procura por mais empatia no atendimento.

"A gente tem um racismo que estrutura nossas relações sociais, e na saúde não seria diferente, independentemente de ser hospital público ou privado. Uma negligência de uma informação, desde a entrada no hospital, até a forma como essa pessoa pode ser tratada por um médico", diz.

Chaves também ressalta que o racismo institucional pode ser observado no alto indicador de mortalidade materna de mulheres negras. Afirma, ainda, que elas são as maiores vítimas de violência obstétrica. "Por causa do estereótipo das mulheres negras parideiras, que sentem menos dor, a quantidade de analgesia [no parto] é bem menor. Isso é uma forma de tortura", diz.

Ela também afirma que a violência obstétrica sofrida por mulheres brancas e negras é diferente. Enquanto no primeiro caso ela está mais relacionada a procedimentos invasivos, no segundo envolve xingamentos, ameaças e até violências físicas como puxões, empurrões e tapas.

Chaves diz que falta inserir na formação educacional um olhar específico para a saúde da população negra. Ela lembra, por exemplo, que as lesões de pele não se manifestam da mesma forma em negros e brancos e que há alguns medicamentos que não funcionam com a mesma eficácia nos dois grupos.

O caso do jornalista Igor Rocha, 34, exemplifica como, às vezes, as especificidades da saúde na população negra não são levadas em conta. Ele sofre de foliculite capilar e queloides, problemas mais comuns na pele negra, e já passou por médicos que receitaram até Roacutan, um forte remédio para acne, para tentar resolver o problema.

"Já passei por vários tratamentos agressivos e depois fui perceber que foi por falta de entendimento do profissional com a pele negra. Depois, acabei descobrindo outros tratamentos que tinham até mais eficácia", diz.

Igor e seu marido, o dentista Arthur Lima, 29, são sócios na plataforma AfroSaúde, que conecta profissionais negros e pacientes, em sua maioria, também negros. A ideia surgiu a partir do incômodo de Arthur com a falta de representatividade no meio.

Inaugurada em agosto do ano passado, a AfroSaúde tem mais de 900 profissionais cadastrados e conta com mais de 30 áreas de atuação, desde medicina até terapias integrativas, como a yoga.

O professor William Melo, 26, utilizou a plataforma para procurar um psiquiatra negro, após ter tido uma experiência negativa num atendimento que considerou acelerado e pouco humanizado. Ele diz que se sente mais confortável, acolhido e compreendido nas consultas com médicos negros e que a certeza do "não julgamento" é importante.

"Foi muito fácil falar sobre questões raciais com a médica porque ela sabe o que é sentir na pele os efeitos diretos e indiretos do racismo. Você não precisa explicar muito, correr o risco de cair numa conversa de vitimismo, de uma pessoa que não entende as suas dores", afirma.

A saúde mental, logicamente, é um dos campos para os quais a demanda pelo atendimento afrocentrado é maior. Se o psicólogo não compreende os efeitos do racismo no paciente, ou invalida suas experiências traumáticas, a chance de sucesso no tratamento será muito menor.

A Casa de Marias, espaço na zona leste de São Paulo formado por uma equipe de cerca de 30 psicoterapeutas, quase todas negras, surgiu para acolher essa demanda.

O grupo atua principalmente com mulheres, vulneráveis, periféricas, e com um olhar especial para a população negra, diz a fundadora, a psicóloga Ana Carolina Barros, 31, doutora em Educação pela USP.

Ela afirma que a formação em psicologia hoje não necessariamente passa pelas questões raciais e sociais que atravessam o país e que isso tem consequências negativas diretas no atendimento.

"Acontece uma série de agressões, de violência, em um processo que deveria ser de acolhimento, de saúde, cuidado. Por exemplo, um paciente negro diz que entrou no mercado e uma pessoa ficou olhando para ele. O psicólogo responde que ele está com persecutoriedade, que é exagero", diz.

Por isso, Ana Carolina entende que, quando uma pessoa negra procura um atendimento afrocentrado, essa é uma tentativa de suprir uma falha da formação do psicólogo e da sociedade como um todo. "É uma tentativa de proteção, uma estratégia para tentar garantir que ela será ouvida e cuidada."