BRASÍLIA, DF (FOLHAPRES) - Privatizações sempre foram polêmicas e ruidosas, acompanhadas por batalhas judiciais e mobilizações de funcionários. Mas a forma como a privatização da Eletrobras foi conduzida pelo governo e capturada no Congresso atraiu questionamentos até de históricos defensores da desestatização.

Os parlamentares incluíram na MP (medida provisória) da privatização emendas que impuseram despesas futuras bilionárias para a nova Eletrobras e vão elevar a conta de luz, quando a meta da privatização era reduzir. No jargão político, essas emendas estranhas são chamadas jabutis.

A nova empresa terá que subsidiar térmicas a carvão --na contramão do mundo, que investe em fontes verdes. Terá de bancar térmicas a gás no interior do país, onde não há produção de gás.

Então, ainda terá de arcar com a construção de gasodutos para abastecer essas térmicas e fazer as linhas de transmissão para levar a energia do interior para as cidades maiores.

Por mais 20 anos, vai continuar mantendo o Proinfa, programa de incentivo a energias alternativas, que já não são tão alternativas. Tudo isso vai para a conta de luz.

"Empresa estatal, quando privatizada, ganha produtividade apenas por se livrar das amarras do controle público, Tribunais de Contas, Ministério Público. Mesmo sem mudar diretores e funcionários, funcionará melhor apenas pela eliminação da paralisia das canetas", diz Jerson Kelman, ex-diretor das agências que monitoram os setores de energia e água, Aneel e ANA.

"Mas os jabutis inseridos no projeto de privatização da Eletrobras constituem lamentável captura do processo de planejamento energético por parte de um Congresso dominado por interesses paroquiais e fisiológicos."

Como essas medidas atendem a interesses políticos, alguns especialistas em energia as consideraram uma espécie de preço extra para garantir o apoio dos parlamentares e fazer a privatização andar.

Também ajudou a reduzir a resistência dos políticos incluir na privatização que a nova Eletrobras fará repasses regulares para fundos regionais voltados à manutenção da estrutura hidrológica, vital para a geração de energia.

Na prática, eles poderão anunciar em suas bases os repasses que vão beneficiar rios como o São Francisco, os da Amazônia e bacias que sustentam o sistema de Furnas.

Para tentar aliviar a conta de luz, há dois procedimentos na regra da privatização.

O primeiro é o compromisso de a nova empresa repassar, por 30 anos, recursos para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), que serão usados para abater a tarifa do consumidor residencial ligado a uma distribuidora.

No primeiro ano da privatização, a regra prevê repasse de R$ 5 bilhões, que resultam direto em abatimento da tarifa residencial. A estimativa é de queda de 2,5% na conta de luz. Como o governo corre para concluir a operação neste ano, antes das eleições, a medida, mesmo sendo bem-vinda, é considerada eleitoreira.

A privatização também vai acabar com a chamada cota, nome dado a um tipo de contrato de energia criado no governo de Dilma Rousseff. Esse contrato garantiu um pagamento fixo para o gerador e passou para o consumidor as despesas variáveis.

Desde lá, quando chove, não tem despesa extra e é ótimo para o consumidor. Mas, em caso de seca, a produção da hidrelétrica cai, o dono da usina produz menos e precisa comprar energia mais cara no mercado para entregar o que prometeu --e essa despesa vai para conta de luz.

Como os últimos anos foram de seca, com elevados gastos excepcionais para geradores, a conta de luz explodiu. O processo de descotização também foi alvo de críticas por ser gradual e ter os benefícios diluídos para o consumidor.

Em relatório divulgado em julho de 2021, a Fiesp avaliou que o modelo de descotização e os jabutis dos parlamentares levariam a um aumento no custo da energia entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões.

O modelo de privatização tem ainda dois problemas que comprometem a redução do custo da energia, segundo especialistas. Primeiro, não oferece nenhum mecanismo para aliviar o peso de energia para a indústria, um custo que chega ao consumidor embutido no preço final dos produtos.

O gasto com energia representa 48% do custo do leite, 25% do cimento, 32% do frango, 10% do custo do açúcar e de materiais de construção da casa popular, segundo a Abrace, entidade dos grandes consumidores de energia.

A energia elétrica responde, em média, por 12% do custo mensal familiar. Na cesta de consumo de 16,7 milhões de famílias com renda de até dois salários mínimos, essa despesa sobe para cerca de 15%.

"O custo invisível da energia vai continuar no preço dos produtos", diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace.

Outro risco para a redução no preço da energia, avaliam especialistas, é o porte final da nova empresa. Mesmo sem Itaipu, que será transferida para outra estatal, a Eletrobras vai ter 26% da geração. Será um gigante. A segunda no ranking, a Engie, tem menos de 6% do mercado.

Inicialmente, as usinas de Tucuruí e Mascarenhas, que são grandes geradoras, seriam privatizadas em separado, reduzindo o peso da nova companhia e incentivando a concorrência. Sem uma discussão mais ampla, porém, elas foram incluídas no pacote da privatização.

"Minha opinião é que, a esta altura, não dá para parar o processo, pois o prejuízo seria alto, mas a oferta da Eletrobras vai entrar para história como a pior privatização já feita", diz Elena Landau, economista e sócia do escritório de advocacia Sergio Bermudes.

Na avaliação de Elena, que foi diretora de Desestatização do BNDES, pelo porte da Eletrobras, sua privatização permitiria a reorganização estrutural da área de energia no Brasil, após um amplo debate. Foi o que ocorreu na privatização do Sistema Telebras, diz ela, o que levou à popularização e à queda no preço do telefone.

Entre os defensores da desestatização, o que se espera é que, livre da ingerência política, a Eletrobras ganhe eficiência e consiga oferecer produtos e serviços mais modernos a preços competitivos.

"A privatização é por natureza controversa. Você pode dizer 'se a estatal é tão boa, por que o Estado não fica com ela e rentabiliza os seus benefícios?' --é um debate legítimo", diz Luiz Augusto Barroso, diretor-presidente da consultoria PSR e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética, responsável pelo planejamento do setor elétrico no Brasil.

"A questão é que o Estado não consegue manter a empresa competitiva dentro de uma indústria em transformação, então, por que não vender e cuidar das atribuições características do Estado, como educação, saúde e segurança pública?"

A reportagem procurou o BNDES e o Ministério das Minas e Energia para contrapor as críticas. Ambos responderam que estão cumprindo o período de silêncio. Esse prazo, estabelecido em lei, normalmente ocorre 60 dias antes da data fixada para uma operação em Bolsa. A data da oferta da Eletrobras ainda não foi definida.