SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É enganosa a publicação compartilhada no Twitter com um vídeo que exibe uma série de recortes nos quais atletas e árbitros desmaiam durante práticas esportivas.

O vídeo, verificado pelo Projeto Comprova, é acompanhado da legenda: "Meras coincidências? Não adianta vir com a história de sedentarismo e obesidade na pandemia. São todos atletas! A incidência de mal súbitos só tende a subir". Comentários deixados na postagem mostram que usuários relacionam os incidentes às vacinas contra a Covid-19.

À exceção de um dos casos mostrado no vídeo, que não conseguimos identificar a data, os demais ocorreram neste ano. Em dois deles, foi confirmado que as pessoas não estavam imunizadas no momento em que o desmaio foi registrado.

A reportagem também foi em busca de pesquisas ligadas ao tema, mas não há indícios de que ocorrências de mal súbitos tenham aumentado recentemente ou de que exista essa tendência, como sugere a publicação. Essa alegação não é respaldada pela ciência, que considera as vacinas seguras para o uso e eficazes contra o vírus.

Casos de desmaios e outras reações de mal súbito são comuns no meio esportivo, ainda que os atletas tenham uma rotina considerada saudável.

A reportagem procurou a usuária que publicou o vídeo, que alcançou mais de 2 mil compartilhamentos, mas não recebeu resposta até a publicação desta verificação.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações.

Como verificamos?

Inicialmente, foi realizada uma busca reversa de imagens, utilizando frames de cada um dos episódios que aparecem no vídeo. São sete situações diferentes, a maioria ocorrida em 2021. Além das situações individualmente, a sequência de atletas desmaiando também aparece em dois vídeos maiores, com mais desinformação sobre vacinas, postados na plataforma russa Vidio+.

Em seguida, o Comprova procurou a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde em busca de informações oficiais sobre casos de mal súbito e entrevistou o médico cardiologista Sérgio Timerman, diretor do Laboratório de Simulação de Emergências Cardiovasculares do InCor.

Por fim, a autora do tuíte foi procurada por meio de um comentário no Twitter, mas não respondeu ao pedido de contato até a publicação desta reportagem.

Verificação

Vacinas e mal súbito

Tanto o mal súbito quanto a morte súbita são definidos por uma perda de consciência inesperada e repentina. A diferença é que, na morte súbita, há também uma parada cardiorrespiratória, segundo explica Sérgio Timerman, diretor do Laboratório de Simulação de Emergências Cardiovasculares do Instituto do Coração.

O mal súbito pode ter causas diversas: infarto, AVC, arritmia cardíaca, longo período sem alimentação, frio e calor intensos. "Diferentemente da morte súbita em que a pessoa perdeu a consciência porque o coração falhou como bomba e ela teve uma parada cardiorrespiratória", explica Timerman.

Ele é enfático ao dizer que é enganosa a relação entre vacinação e casos de mal súbito ou morte súbita. "Eu fui conferir. Não há nenhum relato de parada cardiorrespiratória ou aumento de morte e mal súbitos relacionados à vacina. Isso é fake news."

O Ministério da Saúde informou que não há uma classificação específica para "morte súbita" e não é possível comparar sua incidência ano a ano.

Casos do vídeo

A primeira cena do vídeo publicado pela médica mostra o jogador dinamarquês Christian Eriksen desmaiado em campo. O mal súbito ocorreu no dia 12 de junho durante uma partida de futebol entre Dinamarca e Finlândia pela Eurocopa 2020.

Ele recebeu massagem cardíaca até ser reanimado e encaminhado a um hospital. A partida chegou a ser suspensa, mas foi retomada após a notícia de que Eriksen estava em condição estável. Ele precisou colocar um desfibrilador cardíaco, o que o impediu de seguir como atleta da Inter de Milão, clube italiano pelo qual jogava até o incidente.

Três dias após o episódio, o Comprova mostrou que a morte súbita não tinha relação com a vacina contra a Covid-19, como foi sugerido em boatos divulgados por um blogueiro bolsonarista. Ele se baseou em uma suposta entrevista do médico-chefe do clube de Eriksen a uma rádio italiana, mas a rádio informou que a entrevista nunca existiu. O médico também negou que Eriksen tivesse se vacinado anteriormente ao incidente.

O segundo caso a aparecer no vídeo mostra uma jogadora de críquete caída em campo, enquanto outras se aproximam e chamam por socorro. Nas imagens, não fica claro quem é a mulher caída, mas o episódio aconteceu no dia 2 de julho, durante uma partida entre os times femininos das Índias Ocidentais e do Paquistão, no Coolidge Cricket Ground, em Antígua.

Naquela partida, duas jogadoras das Índias Ocidentais --Chinelle Henry e Chedean Nation-- tiveram mal súbito, com cerca de dez minutos de diferença entre um caso e outro. A reportagem entrou em contato com o Windies Cricket --o time das Índias Ocidentais-- questionando sobre o que causou os dois episódios, mas não obteve resposta.

Contudo, em 3 de julho, o jornal Hindustan Times, de Nova Délhi, publicou em uma reportagem sobre o caso que o clube emitiu um comunicado informando que as duas atletas estavam conscientes e estáveis.

No dia 4, a ESPN publicou que as duas já estavam de volta ao time e incluiu vídeos postados no Twitter do Windies em que elas afirmavam que estavam bem, sem internação hospitalar e sem restrições. As duas puderam disputar a partida seguinte dois dias depois.

O terceiro atleta a aparecer nas imagens é o jogador de futebol francês Moussa Dembele. Ele sofreu um mal súbito e caiu durante um aquecimento, antes de entrar em campo pelo Atlético de Madrid, em 23 de março de 2021.

Segundo o site de notícias Sky Sports, ele chegou a ficar mais de um minuto inconsciente, mas deixou o campo "caminhando sem qualquer ajuda". Outro site, o Talk Sport, afirmou que exames relacionaram o desmaio repentino à baixa pressão arterial.

A reportagem também procurou o Atlético de Madrid para comentar sobre o caso, mas não obteve resposta do clube até esta publicação.

Jack Draper

No vídeo compartilhado também aparecem imagens do momento em que o tenista britânico Jack Draper desmaia durante uma partida oficial. De acordo com publicação do jornal The Guardian, o episódio ocorreu em 25 de março, durante o torneio Miami Open.

Ao portal de notícias Sky Sports, o jogador afirmou que em janeiro ficou duas semanas afastado dos treinos por conta de um quadro "agressivo" de coronavírus.

A LTA, órgão britânico que patrocina atletas no tênis e que concede uma bolsa a Draper, confirmou por email que o desmaio ocorreu por conta do calor. Além disso, afirmou que o tenista não era vacinado contra a Covid-19 na época do episódio e que ele próprio afirmou posteriormente que não estava habituado àquele nível de tênis profissional no calor da Flórida.

O quinto caso a aparecer nas imagens é de um homem que sofre um mal súbito, instantes antes de fazer um saque em uma partida de badminton. A disputa parece acontecer num ginásio ou em outro lugar onde haja mais de uma quadra, e não foi possível identificar elementos que mostrem onde o caso aconteceu, a identidade do homem que aparece nas imagens, nem o estado de saúde dele.

Esta mesma imagem aparece em dois vídeos com mais desinformação sobre vacinas, hospedados em um site russo. A busca reversa de imagens do Yandex localizou outros quatro vídeos, maiores do que o trecho que aparece no tuíte aqui verificado, que indicam que o caso aconteceu no dia 28 de abril de 2021, por volta das 19h, conforme aparece no topo das imagens de uma câmera de segurança.

Quatro perfis diferentes no YouTube compartilharam o mesmo vídeo, todos da Indonésia, mas os títulos e legendas não informam onde o caso aconteceu. Um quinto vídeo encontrado no YouTube sugere que o incidente tenha ocorrido na Malásia.

A reportagem tentou contato com o perfil cujo vídeo tinha mais visualizações, mas não obteve resposta.

O árbitro ganês Charles Bulu também aparece na seleção de imagens divulgadas. Ele desmaiou em 30 de março deste ano, enquanto apitava uma partida entre Costa do Marfim e Etiópia pelas eliminatórias da Copa Africana das Nações.

No dia seguinte, o portal de esportes Goal publicou que o árbitro de 34 anos tinha sido levado a um hospital em Abjdan, na Costa do Marfim, e que passava bem.

Solicitamos informações à Confederação Africana de Futebol, responsável pelo campeonato, mas não obtivemos resposta.

Embora não haja informações se o árbitro já estava vacinado, é improvável que isso tenha ocorrido. Isso porque as primeiras vacinas contra a Covid-19 só começaram a ser administradas em Gana, seu país natal, em 1º de março.

O início da campanha foi possível graças ao consórcio Covax, da Organização Mundial da Saúde, que entregou um lote inicial de 600 mil doses para o país com aproximadamente 31 milhões de habitantes. À entidade, o presidente ganês, Nana Akufo-Addo, informou que os primeiros a serem imunizados seriam os profissionais da área da saúde.

O último a aparecer nas imagens é o árbitro de basquete Bert Smith, que desmaiou durante uma final regional de um torneio universitário, em 31 de março de 2021, em Indianápolis, no estado de Indiana (EUA). A cena deste incidente também consta na seleção de imagens divulgadas pela médica Roberta Lacerda.

Em 9 de abril, Smith contou ao jornal The Indianapolis Star que, por causa do mal súbito naquela partida, descobriu que tinha um coágulo sanguíneo no pulmão. "A gente não sabe para onde o coágulo estava indo em seguida", disse na época.

De acordo com o site de notícias USA Today, Smith testou positivo para coronavírus em agosto, contudo os médicos não disseram se há uma correlação entre a doença causada pelo vírus e seu coágulo sanguíneo.

A reportagem enviou um e-mail de contato ao NCAA Basketball Championship, torneio universitário de basquete dos Estados Unidos, mas não teve retorno até a publicação desta verificação.

Anteriores à pandemia

Sérgio Timerman lembra que já tivemos casos de mal súbito e morte súbita no ambiente esportivo no passado. "Não é algo frequente, mas acontece. Já vimos uma série de casos de parada cardiorrespiratória em campos e quadras esportivas. Muitas vezes houve uma reversão pelo bom atendimento. Outras vezes, não houve reversão."

A reversão ocorre quando a pessoa sofre uma morte súbita, mas é reanimada pela equipe médica. É o que aconteceu com o dinamarquês Christian Eriksen.

Outros casos não tiveram um desfecho feliz. Em 2003, muito antes da pandemia e das atuais vacinas, o meio-campista Marc-Vivien Foé, da seleção de Camarões, disputava a semifinal da Copa das Confederações contra a Colômbia quando teve um colapso em campo e morreu. De acordo com a ESPN, tempos depois foi revelado que ele sofria de cardiomiopatia hipertrófica --uma rara condição hereditária, que afeta menos de 0,2% da população mundial.

Em 2004, o zagueiro do São Caetano Serginho passou mal em decorrência de uma parada cardiorrespiratória durante partida contra o São Paulo, no estádio do Morumbi, em 2004. Ele morreu horas depois no hospital. Posteriormente foi revelado pela imprensa que o clube saberia de um problema no coração do jogador que deveria tê-lo impedido de continuar jogando. Contudo, o time nega.

Atletas de alto rendimento precisam passar por bateria de exames rotineiramente para detectar problemas silenciosos no sistema circulatório e evitar que este tipo de incidente ocorra, explica Timerman. Exemplo disso é o caso do árbitro Bert Smith, cujo coágulo na circulação sanguínea passou despercebido até o momento em que ele desmaiou durante uma partida de basquete. Exames posteriores apontaram o diagnóstico como a causa do mal súbito.

A autora

A autora da publicação é Roberta Lacerda Almeida de Miranda Dantas, graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tanto em sua conta na rede social, como no Currículo Lattes (com última atualização em 2019), consta que possui especialização em infectologia.

Roberta ingressou no Twitter há seis meses, usando a conta para publicações antivacinas e a favor do tratamento precoce --sendo este último comprovadamente ineficaz. Apesar da recente existência da conta, ela reúne mais de 2,4 mil publicações, às vezes com aproximadamente 30 postagens por dia.

A médica também divulga um site que reúne vídeos sobre Covid supostamente retirados das redes sociais por conter conteúdos considerados inadequados pelas empresas de tecnologia. Além disso, replica informações em uma conta no Telegram, que leva seu nome.

Outra publicação de Roberta Lacerda já foi verificada pelo Comprova. Em agosto deste ano, a médica distorceu dados apresentados por um diretor-médico do Herzog Hospital de Jerusalém para levantar suspeitas sobre infecções em não vacinados.

Por que investigamos? Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado sobre a pandemia, eleições e políticas públicas do governo federal. O tuíte checado foi compartilhado 2,3 mil vezes e recebeu 5,5 mil reações. O vídeo foi reproduzido ao menos 39,3 mil vezes até o dia 19 de novembro de 2021.

Conteúdos enganosos desestimulam a população a tomar as vacinas contra a Covid-19, a principal forma atualmente de prevenir o contágio e evitar mortes. O Comprova já mostrou ser mentira que a vacina cause HIV, câncer ou HPV. Também é falso que pessoas possam ser rastreadas após se vacinarem.

Embora a médica não cite os imunizantes em sua postagem, usuários que deixaram comentários acreditam que eles seriam os responsáveis pelos casos mostrados. "Eu fico apavorada. Em minha família toda, apenas eu e meu dois filhos menores não nos vacinamos", disse uma usuária. Outra diz que não tomou os imunizantes e se refere a eles como "experimentais" --alegação já desmentida.

Para o Comprova, enganoso é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações e que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 19 de novembro de 2021.