SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Acreditar que as histórias do seu cotidiano, da sua família e do lugar onde vive ou cresceu podem virar literatura brasileira é um dos exercícios propostos a alunos de escolas públicas municipais de São Paulo pelo Sarau das Pretas, coletivo de mulheres negras engajadas em literatura.

A partir de 29 de março, por meio de palestras virtuais para 600 alunos dos ensinos fundamental, médio e do EJA (Educação de Jovens e Adultos), o grupo pretende mostrar que o universo literário não é algo intocável ou impossível de ser aproveitado por todos.

O objetivo é que os estudantes se sintam representados ao fazerem uma leitura, além de entenderem que também podem integrar o mundo da literatura, desmistificar o caminho até a publicação, incentivar a leitura e a escrita.

Em 2020, o coletivo realizou um concurso literário, no qual mulheres autodeclaradas negras foram incentivadas a escrever. O resultado foi a coletânea das escritas de 30 mulheres e a publicação do livro "Narrativas Pretas", com fomento do VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais), da Prefeitura de São Paulo. Por causa da pandemia a divulgação da obra foi adiada para este ano.

"O coletivo é um espaço de fala e de escuta para essas mulheres. Queremos mostrar aos estudantes como o acesso à cultura mudou nossas vidas e como as escolas podem organizar atividades, clubes de leitura, por exemplo", diz Débora Garcia, funcionária pública e idealizadora do Sarau das Pretas, criado em 2016.

De acordo com ela, "negros e quem vive nas periferias querem se ver em narrativas para além da escravidão. A população negra também sonha, ama, tem seus afetos, famílias sólidas. Não é um personagem que deva ficar em segundo plano".

Neste ano, de acordo com Débora, por meio do projeto Conexões Literárias, serão distribuídos mais de 700 exemplares de "Narrativas Pretas" para o Sistema Municipal de Bibliotecas, que soma 106 bibliotecas em São Paulo, além da realização de palestras virtuais para alunos e oficinas, também onlines, de publicação independente para mulheres maiores de 18 anos no Brasil, que resultará numa cartilha com o conteúdo ministrado nas oficinas.

O projeto teve recursos de R$ 94 mil, utilizados para a compra de equipamentos para realização das atividades onlines, pagamento de prestadores de serviço e ajuda de custo das integrantes do coletivo, publicação da cartilha, envio dos livros para as bibliotecas e escolas, entre outras ações.

Moradora de Itaquera (zona leste), a criadora do Sarau das Pretas, Débora Garcia, fala de sua própria trajetória. Ela conta que estudou a vida inteira na rede pública e levou três anos para ser aprovada no vestibular em serviço social pela Unesp (Universidade Estadual de São Paulo).

Hoje, atua na área social, mas também é artista, poeta e produtora cultural. "Naquela época, não havia políticas públicas de incentivo para o ingresso de pessoas negras e periféricas nas universidades. Estudei em cursinhos comunitários até passar. A educação é uma porta que se abre na nossa vida. Por isso acreditamos tanto nesses projetos com os estudantes."

A funcionária pública afirma que o gênero literário que mais se identifica é a poesia, apesar de apreciar muito a literatura afro-brasileira, também busca inspirações em Cora Coralina, e nos clássicos: Machado de Assis, Manuel Bandeira, Clarice Lispector.

"Não recorro exclusivamente a autores negros ou periféricos, mas faço com maior frequência, até para saber compreender do que estamos falando, pois também sou uma estudiosa dessa área."

Além de apresentar a obra "Narrativas Pretas" e todo o seu processo, o desejo do coletivo é potencializar novas produções com mulheres pretas. "Para isso, serão oferecidas oficinas de autopublicação para mulheres autodeclaradas pretas a partir de 18 anos em todo o Brasil, e que tenham a intenção de publicar", afirma Elizandra Souza, jornalista e poeta, também do coletivo.

"É preciso quebrar essa barreira que a minha geração tinha, de achar que apenas os homens brancos, a elite, poderiam fazer literatura, até porque não nos víamos nas histórias. A ideia é fazer com que os jovens e adultos da periferia percebam que as narrativas de suas vidas e do entorno também são literatura, que tudo isso importa", afirma Débora.

A idealizadora do Sarau das Pretas relata que o projeto surgiu do desconforto que ela própria e outras artistas negras sentiam em não se verem retratadas em obras literárias, da dificuldade de expressar questões da mulher negra, colocar suas pautas em evidência sem serem hostilizadas.

Para a escritora Jenyffer Nascimeto, 37, moradora do Jardim São Luis (zona sul), vem ocorrendo uma mudança nos últimos dez anos na cena literária, motivada principalmente pelo trabalho de outras mulheres negras e programas que incentivam essa produção.

"Quanto mais mulheres negras ou periféricas passam a escrever, outras tantas se sentem representadas e empoderam meninas para que possam se ver como autoras."

Em fevereiro, o Sarau das Pretas fez uma apresentação, com entrada gratuita, e lotou o Theatro Municipal de São Paulo, um dos principais palcos da Semana de Arte Moderna há 100 anos, revivida neste ano com uma programação especial.