SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O avanço da vacinação e a expectativa criada por resultados positivos de medicamentos contra o coronavírus -como a pílula da MSD- não devem tirar o foco de que o principal para o paciente ainda é o atendimento adequado.

A opinião é da cardiologista Ludhmila Hajjar, intensivista da Rede D'Or São Luiz, professora da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora de UTI de Covid no Hospital das Clínicas de São Paulo. Em março, ela recusou convite para ser ministra da Saúde no governo Bolsonaro, após a saída de Eduardo Pazuello.

Acostumada a tratar de políticos e celebridades, ela afirma que falta ao país uma padronização do atendimento para enfrentar a Covid nas redes pública e privada. Desde o início da pandemia, o Brasil registra 600 mil mortes pela doença.

"Nós já aprendemos que o principal para essa doença são boas condições de atendimento, suporte estrutural, equipe médica, não morrer de infecção bacteriana. Mas nós não descobrimos uma medicação milagrosa", afirma.

Em meio à sua rotina corrida, não raro com mais de 18 horas de trabalho, a médica falou à Folha de S.Paulo o que funciona na hora de cuidar de pacientes com Covid e contou ainda resultados da pesquisa que liderou com tocilizumabe, anticorpo monoclonal que não demonstrou benefício contra a doença.



PERGUNTA - Atualmente, a senhora é a pesquisadora principal de 15 estudos clínicos, o mais recente a ser concluído foi com tocilizumabe. Qual foi o resultado?

LUDHMILA HAJJAR - O tocilizumabe é uma medicação já aprovada há anos para o tratamento da artrite reumatoide. Nós descobrimos que, nas formas graves de Covid, com comprometimento respiratório, também há uma liberação aumentada de fatores inflamatórios. Foi daí a ideia de fazer um estudo para avaliar o tocilizumabe, ainda em abril de 2020, mas meu projeto não foi aprovado no Ministério da Saúde por falta de recursos.

Na mesma época, a OMS [Organização Mundial da Saúde] iniciou um grande estudo com essa droga, o Recovery. Só bem tardiamente meu projeto foi aprovado em um edital do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], e o ensaio clínico começou apenas em janeiro deste ano.

Mesmo assim, é um estudo bastante importante. Finalizamos agora, com 308 pacientes, em estado grave, no HC [da USP]. Nosso resultado foi que o tocilizumabe não adicionou nenhum benefício em termos de chance de o paciente ser intubado ou de reduzir a mortalidade.

Além do nosso, há oito estudos menores já publicados e o grande estudo da OMS, que foi o único com resultado positivo. Mas eles tiveram 4.000 pacientes em cada braço, e um benefício pequeno nesse caso já tem poder estatístico. Foi isso que deixou todo mundo interessado e subiu com o preço do remédio. Uma corrida desnecessária e não baseada em evidências científicas.

P. - O que sabemos hoje que funciona para a evitar a mortalidade?

LH - Nós já aprendemos que o principal para essa doença são boas condições de atendimento: não morrer de infecção bacteriana, ter ventilação mecânica não invasiva, intubar adequadamente e no momento certo. Não descobrimos uma medicação milagrosa, algo que vá modificar a sobrevida do paciente. Não adianta focar no remdesivir [antiviral aprovado pela Anvisa], no tocilizumabe... O nosso foco, óbvio, tem que ser em prevenção, mas, quando temos o paciente infectado, temos que focar na estrutura, no treinamento das equipes e no atendimento. Isso é fundamental.

P. - Como deve ser o trabalho das equipes? E qual é a estrutura necessária?

LH - O que eu vi cuidando de gente em todo o Brasil: muitos doentes morreram porque demoraram para intubar, porque não sabiam intubar ou porque após a intubação a pressão despencou, e não conseguiram ressuscitar. Muita morte também por infecção bacteriana, pelas condições estruturais. Não adianta só comprar o respirador. As pessoas estão treinadas para usá-lo? Tem tomografia no hospital? Tem radiografia? Tem fisioterapeuta?

Nessa doença, e nas doenças virais em geral, como a dengue, não temos um tratamento específico que vá mudar [o curso da doença], mas sim o suporte.

P. - Nenhum dos anticorpos monoclonais, inclusive os que foram aprovados pela Anvisa, dá bom custo-benefício?

LH - Dão, mas os anticorpos monoclonais são para uma outra fase da doença, o início. Os estudos são positivos para pacientes que tiveram diagnóstico e têm alto risco para complicar, recebem o anticorpo monoclonal e reduzem significativamente a sua chance de hospitalização.

P. - Esse é o modelo adotado nos EUA, certo?

LH - Exatamente. Você "captura" o doente que é idoso, obeso, diabético, cardiopata ou já tem carga viral alta, com perfil inflamatório, e trata com o coquetel no hospital.

P. - Do ponto de vista medicamentoso, o que faz diferença então?

LH - Para o paciente não ser hospitalizado, anticorpos monoclonais. E, para o doente hospitalizado, a medicação que foi invariavelmente positiva [nos estudos] foi a dexametasona [corticosteróide], que é barata e tem na rede pública. Também foi adotado o anticoagulante que, aparentemente, na dose preventiva é melhor -e heparina também é barata e tem em todo lugar-, para evitar coágulos.

Já o remdesivir é uma medicação que, caso tivesse em ampla escala, seria usada, mas o benefício é marginal. O maior estudo da droga mostrou que numa população de 1.092 pacientes ele diminuiu o tempo de doença, mas não reduziu a mortalidade ou a chance de intubação.

A dose completa de remdesivir custa R$ 25 mil. A ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] fez com que os planos de saúde pagassem, mas o SUS [Sistema Único de Saúde] não introduziu isso na prática clínica. Não critico. Se há um investimento, que ele seja priorizado no que realmente muda a lógica de tratamento dos pacientes. E, no caso desta doença, é o tratamento de suporte. Isso está claro.

P. - Por atuar tanto na rede pública quanto privada, acha que há ainda muita diferença no atendimento para Covid entre elas?

LH - Existe, como sempre existiu, em tudo: na estrutura hospitalar, no fato de que eu tenho remdesivir na rede privada e não tenho na pública. Tanto é que os dados são indiscutíveis, é melhor a sobrevida de um paciente no privado do que no público. Infelizmente.

Essa disparidade ficou mais evidente nesta doença, mas é claro que a rede pública fez o seu papel. Em um país do tamanho do Brasil, se não houvesse acesso universal, teríamos muito mais mortos. Mas, do ponto de vista de quem está na linha de frente e vive as duas realidades, é muito diferente. E não deveria ser.

Sei que é impossível ter a estrutura de um hospital nível A para 210 milhões de habitantes, mas o mínimo de qualidade de atendimento e de estrutura é um direito do cidadão. A gente paga por isso.

P. - Quanta gente morreu sem transporte, ou porque parou no posto de saúde e não teve atendimento complexo?

LH - Porque não tinha um intensivista ou fisioterapeuta? Ou vaga de UTI? A gente já vivia um déficit de leitos, aumentamos em milhares de leitos e treinamos pessoal, mas isso aconteceu tarde.

Em relação aos procedimentos nos hospitais, caso tivesse aceitado o convite para ser ministra, o que teria feito?

Primeiro, teria equilibrado o tratamento do ponto de vista de treinamento. Isso daria para ser feito a curto prazo. Colocaria as universidades para ter um p apel mais ativo, faria boas parcerias público-privadas. Nós temos tantas faculdades particulares sem hospital e tantos hospitais públicos com falta de recursos, não seria tão difícil. Em segundo lugar, faria uma desburocratização, no sentido de incorporar novas tecnologias e medicamentos, encurtando o tempo para avaliá-los.

P. - O principal desafio do atual ministro, Marcelo Queiroga, é a campanha de vacinação. Como avalia essa fase? Poderia ter ido melhor?

LH - Sem dúvida, mas a gente teve um ganho nos últimos meses. [A vacinação] demorou para começar, mas felizmente os números estão aumentando e isso resulta na redução significativa de mortes. Há ainda muita politização, coisas que acabam atrapalhando a velocidade, mas avançamos e agora temos leitos disponíveis para tratar outros doentes.

P. - Passado esse tempo, fica aliviada de ter recusado o ministério?

LH - Sem dúvida é um alívio. Tenho certeza que não conseguiria fazer o que eu pretendia. Não foi uma indicação política, mas, sim, porque eu estava me destacando no combate à Covid. Eu não seria feliz estando ali. Se tivesse uma opção de ter um cargo estritamente técnico no combate à pandemia, seria outra história, mas não como política.

P. - Como a sua rotina, que já era agitada, foi afetada pela pandemia?

LH - Agitou mais cem vezes (risos). Eu não tinha noite, não tinha dia, não tinha final de semana. Foi mais de um ano de dedicação total. Dormia "picado", por algumas horas.

A vida do profissional da saúde mudou, mas nós aprendemos, tivemos muitas vitórias, além de, claro, termos sofrido também junto com as pessoas. Na época [da crise] de Manaus, eu fiquei muito chateada. Muitos pacientes foram transferidos para cá [São Paulo] e acho que fui a médica daqui que mais cuidou dos amazonenses. Foi realmente uma experiência de vida. A gente viveu nos limites da morte e da vida. Essa doença é esquisita demais.