BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O MPF (Ministério Público Federal) aponta "vício insanável", "falácia" e "patrocínio de conflito de interesses" no projeto de lei que libera mineração em terras indígenas e prevê contestação da lei, em caso de aprovação pelo Congresso, nas mais de dez ações movidas na Justiça Federal contra exploração de garimpo em territórios demarcados na Amazônia.

A votação de urgência do projeto está prevista para ocorrer na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (9). O líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), afirmou em uma rede social que os líderes dos partidos vão medir junto a suas bancadas o apoio ao texto.

O presidente Jair Bolsonaro (PL), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o centrão usam o pretexto da guerra entre Rússia e Ucrânia –e uma eventual crise de fornecimento de fertilizantes– para tentar acelerar a votação de um projeto apresentado pelo Executivo em fevereiro de 2020. A proposta ficou parada desde então.

De interesse direto de Bolsonaro, o projeto foi apresentado ao Congresso pelo ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, e pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, hoje desafeto do presidente e pré-candidato à Presidência.

Bolsonaro e Lira querem que o projeto seja votado com urgência, diretamente em plenário, atropelando comissões e consultas aos principais interessados: as comunidades indígenas. O líder do governo na Câmara coletou assinaturas para um requerimento de urgência.

Procuradores da República com atuação na região da Amazônia afirmaram à Folha que, caso o projeto de lei prospere, o MPF seguirá contestando iniciativas de mineração em terras indígenas.

Para isso, o procedimento previsto é uma arguição de inconstitucionalidade incidental, em que as ações apontariam a lei como inconstitucional, para que a Justiça, então, decida o mérito da causa.

O MPF já moveu ações civis públicas contra requerimentos de mineração em terras indígenas na Amazônia, protocolados na ANM (Agência Nacional de Mineração).

A prática da ANM é manter esses requerimentos suspensos, sem anulá-los, segundo o MPF. Há ações do tipo na Justiça Federal no Amazonas, Pará, Roraima e Amapá.

Outras ações contestam empreendimentos de mineração com impacto em terras indígenas vizinhas ou desenvolvidos em terras ainda não demarcadas.

Para o MPF, o argumento de Bolsonaro sobre a necessidade de terras indígenas para exploração de potássio –base para fertilizantes usados na agricultura em larga escala– não faz sentido, pois as minas com potencial de exploração ficam fora dessas áreas demarcadas.

"O estado de beligerância, de ameaça externa ou mesmo a declaração de guerra entre dois ou mais países não autorizam a diminuição do sistema de proteção internacional dos direitos humanos, particularmente das minorias e de grupos vulneráveis", afirmam integrantes da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, colegiado que funciona no âmbito da PGR (Procuradoria-Geral da República).

O colegiado divulgou uma nota técnica na noite desta terça (8) em que aponta a inconstitucionalidade do projeto de lei.

Os subprocuradores-gerais que integram a câmara já elaboraram outras duas notas técnicas contra o projeto de lei que libera mineração em terras indígenas, uma em 2020 e outra em 2021. O tom das duas notas também é de ampla crítica à proposta do governo Bolsonaro.

Segundo a câmara da PGR, há 4.000 procedimentos minerários que incidem em 216 terras indígenas. São basicamente pedidos para exploração por pessoas físicas e jurídicas, sem validade em razão da ilegalidade desse tipo de exploração.

O projeto de lei tratado como prioritário por Bolsonaro contém um "vício insanável", pois tenta regulamentar mineração em terras indígenas sem um prévio debate do Congresso sobre o interesse público da União, conforme o colegiado da PGR.

Falta uma lei complementar para isso, e por isso a proposta significaria um atropelo à Constituição Federal.

"Este projeto de lei patrocinou o conflito de interesses e direitos que estão pacificados no corpo da própria Constituição da República", afirmam os subprocuradores.

"Não pode o legislador ordinário baixar uma política minerária que derrogue todo um capítulo da Constituição, tornando letra morta dispositivos constitucionais que vieram a lume na Assembleia Nacional Constituinte, como instrumento de reparação de uma dívida histórica de séculos de opressão contra os povos indígenas no Brasil", dizem os integrantes da PGR.

O projeto de Bolsonaro parte de uma "premissa falsa" sobre a possibilidade de exercer a atividade econômica minerária em terras indígenas e se traduz em "falácia" ao fazer uma equivalência entre atividades econômicas e atividades estratégicas na mineração, argumentam.

Além de desrespeitar a Constituição, o projeto afronta a convenção número 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), uma vez que "não houve consulta prévia às comunidades indígenas afetadas", dizem os integrantes da PGR.

Segundo o MPF, grandes empreendimentos de mineração representam uma "grave ameaça" à integridade das terras indígenas, como já ocorreu em diversos momentos da história recente.

"A apresentação do PL 191/2020 e as manifestações de apoio ao garimpo emanadas de algumas autoridades explicam, ao menos em parte, o crescimento dessa atividade ilegal em terras indígenas, o que ameaça comunidades indígenas próximas às áreas de garimpo."

Nesta terça, Lira se reuniu com líderes partidários para discutir o projeto. À oposição, o presidente da Câmara disse que ia levar a aliados da base do governo a proposta de criar um grupo de trabalho para debater o texto de mineração.

Na avaliação do líder do PSB na Câmara, Bira do Pindaré (MA), não há necessidade de votar o texto agora. "É um grande oportunismo tentar passar um projeto que é uma pauta do governo", criticou.

A líder da Rede na Câmara, Joenia Wapichana (RR), primeira mulher indígena a ganhar uma eleição para o Congresso, considera absurdo votar o projeto —que ainda não tem parecer—, especialmente num momento de pandemia, o que inibe a participação popular.

"E também com uma justificativa injustificável, que é a guerra da Rússia com a Ucrânia, dizendo que vai faltar fertilizantes e que a solução seria explorar terras indígenas."

Segundo ela, o projeto não vai dar uma resposta à crise de fertilizantes. "Ele tem vícios formais, porque é uma matéria colocada através de lei ordinária, mas a regulamentação de terras indígenas, no meu entender e no de muitos juristas, deveria ser por lei complementar", disse.

"Querem utilizar o projeto para justificar a possibilidade de faltar potássio no Brasil. Não tem reservas tão grandes assim de potássio nas terras indígenas", disse. "Estão aproveitando uma guerra que está acontecendo no mundo para criar outra guerra aqui dentro do território brasileiro, em cima dos territórios indígenas."

Um grupo de artistas liderado pelo cantor e compositor Caetano Veloso realizou nesta quarta, em Brasília, um ato contra projetos de lei que afrouxam a legislação ambiental.

Ao lado de lideranças de movimentos socioambientais, eles foram recebidos por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Depois das reuniões, os artistas fizeram discursos e começaram um show em palco montado em frente ao Congresso Nacional.

O protesto foi chamado de "ato pela terra contra o pacote da destruição". A ideia é se opor à aprovação de projetos que afrouxam a legislação sobre terras indígenas, agrotóxicos, grilagem de terras e licenciamento ambiental.