MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) - Um movimento contrário à guerra na Ucrânia na sociedade russa tem ganho tração, com adesão em peso de intelectuais e celebridades do país. Até a filha do porta-voz de Vladimir Putin protestou, aparentemente, já que sua postagem crítica foi apagada. O desafio da campanha é chegar às ruas.

Em meio à pandemia da Covid-19, o presidente russo determinou uma campanha de repressão a qualquer tipo de ativista contrário ao Kremlin. O estopim foram os atos gigantes contra a prisão do opositor Alexei Navalni em 2021, que por sua vez havia organizado alguns dos maiores protestos contra o Kremlin nos anos anteriores.

A reação contra o ataque ao governo de Kiev começou lentamente, enquanto as tropas russas ainda se mobilizavam junto às fronteiras do vizinho. Mas foram os mísseis atingiram a Ucrânia na quinta (24) que aceleraram o protesto.

Uma das mais cintilantes adesões foi de Lisa Peskova, uma das filhas de Peskov e celebridade na internet russa. Ela postou no Stories de sua conta Instagram o "Não à guerra" nesta sexta (25). A postagem foi apagada na sequência, deixando em aberto se ela foi vítima de algum hacker. Mas Lisa tem um histórico de polêmicas no país, tendo sido alvo de críticas por ter defendido direitos LGBTQIA+ em um país em que políticas homofóbicas são de Estado.

Ativistas históricos pelos direitos humanos agiram. Lev Ponomarev, por exemplo, juntou 500 mil assinaturas online a um manifesto em que chama a guerra de insanidade. O Prêmio Nobel da Paz de 2021 Dmitri Mutarov fará rodar o jornal que dirige, o Novaia Gazeta, em edição bilíngue russo-ucraniana.

Um grupo de 300 professores da rede estatal publicou carta aberta a Putin, e 150 cientistas fizeram um manifesto antiguerra. Elena Kovalskaia, diretor do Teatro Estatal de Moscou, foi ainda mais dura. Pediu demissão e postou: "É impossível trabalhar para um assassino e ser paga por ele".

O Centro Ieltsin, que cuida da memória do presidente Boris Ielstin, o homem que indicou Putin para ser premiê e, depois, presidente ao renunciar no Ano Novo de 2000, pediu "o fim imediato das hostilidades na Ucrânia".

Já a repórter Elena Tchernenko, do diário Kommersant, perdeu sua credencial para cobrir o Ministério da Relações Exteriores por ter organizado uma carta contra a guerra, assinada por cerca de 100 jornalistas.

A onda chegou ao mundo das celebridades. Oxxxymiron, um dos mais populares rappers russos, cujo nome é Miron Fiodorov, foi ao Instagram protestar. "Isso [a guerra] é um crime e uma catástrofe", disse, cancelando seis show com lotação esgotada que faria em Moscou e São Petersburgo.

"Eu não posso entreter vocês enquanto mísseis russos caem sobre a Ucrânia. Quando residentes de Kiev são forçados a se esconder em porões e no metrô, enquanto as pessoas estão morrendo", completou.

O mais famoso jogador de futebol do país, o atacante Fiodor Smolov, da seleção russa e do Lokomotiv de Moscou, rompeu o usual silêncio imposto por patrocinadores à categoria. "Não à guerra!", postou em suas redes sociais.

Já o tenista Andrei Rublev escreveu na lente de uma câmera "Sem guerra, por favor", após vencer o Aberto de Dubai nesta sexta. O grande mestre Ian Nepomniachtchi, um dos mais famoso enxadristas russos, também protestou.

Nas ruas, contudo, o Kremlin já demonstrou que manterá a linha-dura. Ao longo da quinta, culminando em uma manifestação no centro da capital, protestos foram registrados em mais de 40 cidades. A repressão deu seu recado, prendendo cerca de 1.800 pessoas, segundo a ONG de monitoramento de violência policial OVD-Info.

Questionado acerca disso, o porta-voz Peskov tentou contemporizar. "O presidente sempre ouve as pessoas", disse. "Os cidadãos podem ter seus próprios pontos de vistas. Então, nós precisamos explicar as coisas melhor a eles. Segundo, sem seguir os procedimentos apropriados, esses cidadãos não têm o direito legal de organizar demonstrações para expressar seus pontos de vista", disse.

Na Rússia, não é possível fazer atos sem permissão prévia das autoridades municipais. Atos individuais são em tese liberados, mas mesmo isso foi atacado na quinta.

Peskov disse que a população aprova a ação. Ainda não há pesquisas feitas após os eventos da semana, que começou com o reconhecimento das áreas rebeldes pró-Rússia no leste ucraniano por Putin e acabou com a guerra.

A mais recente sondagem do prestigioso Centro Levada, instituto independente que inclusive é fichado como "agente estrangeiro" pelo Kremlin, indica que 60% dos russos tinham uma "imagem negativa ante a Ucrânia" --dez pontos a mais do que na rodada anterior, em dezembro.

Metade dos 1.600 ouvidos se dizia "assustado" com a perspectiva de uma guerra. A pesquisa, feita de 17 a 21 de fevereiro, tem uma margem de erro de dois pontos para mais ou menos.