SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos nesta quinta (20), no Rio de Janeiro. Considerada a "voz do milênio" em uma votação de 1999 da rádio BBC de Londres, a artista morreu por causas naturais, aponta nota de sua assessoria publicada nas redes sociais.

"É com muita tristeza e pesar que informamos o falecimento da cantora e compositora Elza Soares, aos 91 anos, às 15 horas e 45 minutos em sua casa, no Rio de Janeiro, por causas naturais", diz a publicação. "Teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação. A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo mundo."

Filha de operário e lavadeira, Elza Gomes da Conceição nasceu em junho de 1930, no Rio de Janeiro. Ela foi criada na favela de Moça Bonita e, aos 12 anos, foi obrigada pelo pai a se casar com Antonio Soares, conhecido como Alaúde, de quem pegou o sobrenome. Aos 13, ela foi mãe pela primeira vez. Aos 15, já tinha perdido dois filhos para a fome. Aos 21, já era viúva.

Encaixotadora e conferente em uma fábrica de sabão, Elza começou na música em 1953, quando fez um teste na Rádio Tupi, no programa "Calouros em Desfile". Foi quando deu uma famosa resposta a Ary Barroso, que inclusive deu nome a "Planeta Fome", 34º álbum de sua carreira, e também o último, lançado em 2019.

Na ocasião, o apresentador perguntou a ela, "o que você veio fazer aqui?". "Vim cantar", respondeu Elza. Ele seguiu. "E quem disse que você canta?". "Eu, seu Ary", ela disse. "Menina, de que planeta você veio?", o apresentador continuou. "Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta Fome", a cantora encerrou.

Em 1959, ela despontou com a música "Se Acaso Você Chegasse", uma composição de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins que também deu nome ao primeiro disco de Elza. A gravação já trazia as credenciais da artista, marcada pela voz rouca e pelo estilo de canto rasgado.

Ao longo dos anos 1960, ela se estabeleceu como uma das principais intérpretes de samba do país, em discos como "A Bossa Negra" (1960), "O Samba é Elza Soares" (1961), "Sambossa" (1963), "Na Roda do Samba" (1964) e "Um Show de Elza" (1965), além dos duetos com o cantor Miltinho e de parcerias com o baterista Wilson das Neves.

Foi nessa época que ela estabeleceu as bases para o título de Rainha do Samba, que ostentou por muitos anos, mesmo nunca se limitando a ele. "Esse título de rainha do samba ficou para trás. Quem tem coroa aqui? Rainha faminta? Quero não", a cantora disse ao jornal Folha de S.Paulo em 2019.

Na Copa do Mundo de 1962, vencida pelo Brasil no Chile, Elza aprofundou seu relacionamento com Garrincha, craque do Botafogo e principal nome daquela seleção —Pelé se machucou no mundial. Depois da Copa, o jogador abandonou a família para viver com ela, o que deu à cantora a pecha de "destruidora de lares". ​

Eles ficaram juntos por 17 anos, em um relacionamento conturbado, no qual ela foi vítima de violência doméstica. O Mané Garrincha tinha problemas com o alcoolismo desde antes de conhecer a cantora e, quando morreu, em 1983, Elza também passou a ser vista como a "destruidora de Garrincha" —por ter supostamente deixado o craque sucumbir ao álcool.

No início de sua carreira, Elza não viveu só de música. Amiga pessoal de Amácio Mazzaropi, ator e cineasta que foi um dos maiores nomes da comédia brasileira, ela chegou a participar de três de seus filmes entre os anos 1960 e 1970.

O primeiro deles foi "O Vendedor de Linguiça", de 1962, em que Mazzaropi vive um comerciante que passeia pela periferia de São Paulo diariamente para vender as linguiças que produz. Certo dia, a pedido da filha, apaixonada por um rapaz endinheirado, ele decide se passar por um homem rico.

Elza também participou de filmes que não tiveram o envolvimento de Mazzaropi. Na verdade, seu primeiro crédito no cinema é anterior à parceria —foi em 1960, em "Briga, Mulher e Samba". O filme gira em torno da indústria fonográfica, ao acompanhar um rapaz que sonha em se tornar compositor no Rio de Janeiro.

Foi durante a década de 1980 que Elza entrou numa espécie de ostracismo, depois de se aproximar do samba mais tradicional do Rio nos anos 1970. Esta fase rendeu a ela sucessos como "Bom Dia Portela" e "Salve a Mocidade", além de "Malandro", composição de Jorge Aragão e Jotabê que é até hoje uma das músicas mais conhecidas na voz de Elza.

Nos anos 1980, lançou apenas dois discos, "Somos Todos Iguais" —em que canta "Milagres", de Cazuza e Frejat—, de 1984, e "Voltei", de 1988. Em 1986, ela perdeu mais um filho —ao todo, quatro filhos de Elza morreram—, o Garrinchinha, em um acidente de carro.

Em 1984, Caetano Veloso escreveu a música "Língua", uma espécie de samba-rap, gravada em parceria com Elza. Na época, ela estava disposta a desistir da carreira na música. "Fui capaz de convencê-la a ficar porque entendi que aquilo era uma espécie de pedido de socorro", o tropicalista escreveu no Instagram.

A música ajudou a trazer a cantora de volta aos holofotes, quando ela voltou a aparecer na TV e chegou a gravar "A Voz da Razão", com Lobão, em 1986. Mas na década seguinte, ela voltou a ficar longe dos estúdios, e passou a morar mais no exterior do que no Brasil.

"Meu filho morreu, me descontrolei totalmente. Larguei tudo e fui embora para a América, completamente sozinha. Eu estava muito chata. Fui para Paris, Roma. Até que disse: "Gente, vou voltar para o Brasil". Não acredito que exista alguém mais patriota que eu. Chego a ser nojenta. Olhava Paris, dizia: "Não parece o Brasil". Ia para Londres, Londres é cinzenta. Nova York: "Não gosto, não", ela disse à Folha de S.Paulo em 1997, quando lançou "Trajetória", álbum em que voltou ao samba, cantou com Zeca Pagodinho e gravou uma comovente versão de "Meu Guri", de Chico Buarque.

Se "Trajetória" era dedicado ao samba mais tradicional, em 2002 ela abraçou o experimentalismo no disco "Do Cóccix até o Pescoço", dirigido por Zé Miguel Wisnik, em que canta de Jorge Ben a Caetano Veloso. Aquele álbum representou não só uma ruptura com o samba, mas também a aproximação da influência da música negra contemporânea, do soul ao hip-hop, além das letras socialmente conscientes que são indispensáveis para sua obra mais recente.

É daqui também o dueto "Façamos (Vamos Amar)", com Chico Buarque, e a música "A Carne", que se tornou um de seus hinos. Em 2019, no disco "Planeta Fome", seu último lançado em vida, ela retomou o refrão de "A Carne" —"a carne mais barata do mercado é a carne negra"—, atualizando-o para "a carne mais barata do mercado não está mais de graça". "Eu não valia nada. Hoje, estou valendo uma tonelada", disse à Folha de S.Paulo.

Desde 2015, a carreira de Elza teve uma nova guinada com "A Mulher do Fim do Mundo", seu primeiro álbum só de canções inéditas, feitas por músicos como Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Celso Sim. O álbum, aclamado pela crítica dentro e fora do Brasil, marcou a aproximação da veterana cantora com essa nova geração de músicos de São Paulo, que inseriram guitarras e letras de cunho social na obra da cantora.

O disco teve ampla repercussão e, nas palavras do crítico Luiz Fernando Vianna, fez Elza "renascer das cinzas" e ser apresentada a um público mais jovem.

Ela seguiu em toada parecida três anos depois com "Deus É Mulher", outro álbum de 11 inéditas com composições de Tulipa Ruiz, Pedro Luis, Alice Coutinho e Romulo Fróes, entre outros. Apesar de render novos hinos, como "Maria da Vila Matilde", que denuncia a violência contra a mulher, ela foi alvo de críticas pela falta de mulheres nos bastidores dos álbuns.

"Ah, deixa o pessoal reclamar. Inclusive, sinto falta disso. Botaram Lexotan na água do povo. Está todo mundo calado. Nos anos 1960, eu via muita gente na rua. Chico, Caetano, aquelas composições fortes. Sofreram, claro, por toda a rebeldia. Mas, hoje, está todo mundo com medo de falar. É por isso que uso minha voz, para falar o que se cala", disse à Folha de S.Paulo em 2019.