SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As principais empresas de telecomunicações de Mianmar começaram a bloquear o acesso ao Facebook no país nesta quinta-feira (4) obedecendo ordens dos militares que tomaram o poder após o golpe de Estado contra o governo civil aplicado na segunda (1º).

De acordo com uma carta do Ministério das Comunicações e Informação tornada pública, a plataforma, assim como Messenger, Instagram e WhatsApp, deve permanecer bloqueada até pelo menos o próximo domingo (7) por uma questão de "estabilidade".

"Atualmente, as pessoas que estão perturbando a estabilidade do país estão espalhando notícias falsas e desinformação e causando mal-entendidos entre as pessoas usando o Facebook", argumentou a pasta, uma das 24 cujos ministros foram exonerados e substituídos por militares.

Ao menos duas empresas, a estatal MPT e a norueguesa Telenor Asa, confirmaram a interrupção do acesso às redes sociais determinada pelo regime. Os militares também anunciaram que vão bloquear serviços de VPN, provedores de internet privados que podem ajudar a driblar as proibições.

A Telenor expressou "grande preocupação" com a ordem dos militares que, segundo a empresa, foi enviada a todas as operadoras de telefonia móvel e provedores de serviços de internet nesta quarta-feira (3).

Clientes da Telenor que tentarem acessar os sites e aplicativos bloqueados serão direcionados a uma página que afirma que a proibição é decorrente de uma determinação das autoridades.

"Embora a diretiva tenha base legal na lei de Mianmar, a Telenor não acredita que o pedido seja baseado na necessidade e na proporcionalidade, de acordo com a lei internacional de direitos humanos", informou a empresa.

Andy Stone, porta-voz do Facebook, pediu que as autoridades do país "restaurem a conectividade para que as pessoas em Mianmar possam se comunicar com suas famílias e amigos e acessar informações importantes".

A empresa de Mark Zuckerberg disse que está tratando a situação em Mianmar como uma emergência e adotando medidas temporárias para se proteger contra danos, como a remoção de conteúdo que elogia ou apoia o golpe militar.

As redes sociais, nas quais vêm crescendo o engajamento nas campanhas de desobediência civil, têm sido o principal canal de oposição ao golpe no país que possui um histórico de reações violentas a protestos de rua.

Em 1988, milhares de manifestantes desarmados foram mortos pelas Forças Armadas durante a repressão a grupos que pediam o fim do regime militar —o país viveu sob ditadura de 1962 a 2011.

Nesta quinta, contudo, as duas maiores cidades do país foram palcos de pequenas manifestações contra os militares. Em Rangoon, um grupo com pouco mais de dez pessoas protestou e se dispersou rapidamente.

Em Mandalay, cerca de 20 pessoas utilizaram cartazes para pedir a libertação dos líderes civis. O ato foi transmitido pelo Facebook que, em algumas regiões, ainda pode ser acessado. De acordo com grupos de ativistas, três pessoas foram presas durante os protestos, e o número total de detidos desde a tomada de poder é de ao menos 147.

Antes desta quinta, os protestos haviam se limitado a panelaços e buzinaços. "Estamos acostumados a fazer o máximo de barulho possível para expulsar os espíritos malignos de casas e vilas. Aqui os demônios são os militares", disse à agência de notícias AFP Thinzar Shunlei Yi, que criou um grupo de desobediência civil após o golpe.

A participação mais significativa do movimento de resistência está concentrada na classe de profissionais da saúde. Médicos, enfermeiros e outros funcionários de mais de 70 hospitais públicos e departamentos médicos de 30 cidades pararam de trabalhar. ​

Em resposta, o Exército anunciou nesta quinta-feira que as pessoas poderiam receber tratamento em hospitais militares, embora os grevistas não tenham se recusado a atender casos de emergência.

Muitos dos que continuam em atividade têm usado fitas vermelhas nos uniformes para marcar a oposição ao regime militar usando a cor da Liga Nacional pela Democracia (LND), partido que obteve vitória esmagadora contra a legenda apoiada pelos militares na eleição de novembro.

Entre as lideranças civis detidas pelos militares estão a conselheira de Estado e ganhadora do Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, e o presidente Win Myint. As acusações contra ambos foram formalizadas nesta quarta-feira (3).

Suu Kyi, que já passou 15 anos em prisão domiciliar entre 1989 e 2010, pode ser condenada a mais três anos de pena por importação ilegal e uso sem autorização de seis walkie-talkies —uma acusação considerada obscura pela comunidade internacional.

Myint, por sua vez, foi indiciado por crimes contra a lei de gestão de desastres devido a uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus. Com 53 milhões de habitantes, Mianmar registrou pouco mais de 140 mil casos e 3.160 mortes por Covid-19, de acordo com dados compilados pela Universidade Johns Hopkins.

A LND, partido da conselheira e do presidente, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento de Mianmar. Os militares, entretanto, alegam que houve fraudes no pleito e que, por isso, assumiram o controle do país. O regime diz que o poder será transferido após a "realização de eleições livres e justas".

O chefe das Forças Armadas, general Min Aung Hlaing, que agora lidera o país, disse a um grupo de empresários que, para coordenar o novo pleito, poderia se manter no poder por seis meses após do fim do estado de emergência de um ano.

"O Exército teve que assumir o comando por várias razões, mas não irá além do caminho democrático", disse ele ao jornal People Media, alinhado aos militares.

Também nesta quarta, cerca de dez parlamentares eleitos em 8 de novembro fizeram uma sessão simbólica nos alojamentos em que estão abrigados desde a tomada de poder, concretizada no mesmo dia em que ocorreria a primeira reunião da nova legislatura.

O golpe recebeu duras críticas da comunidade internacional. Líderes políticos de diversas nacionalidades pediram o restabelecimento do governo democraticamente eleito e a libertação de todos os presos civis.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, prometeu uma mobilização para fazer pressão internacional e “garantir que esse golpe fracasse”.

“Vamos fazer tudo o que podemos para mobilizar todos os atores-chaves e a comunidade internacional para colocar pressão suficiente sobre Mianmar para garantir que esse golpe fracasse”, afirmou Guterres durante uma entrevista transmitida pelo jornal The Washington Post.

Nesta quinta, o Conselho de Segurança da ONU pediu pela libertação dos detidos. Em um comunicado assinado pelos 15 países que integram a cúpula, eles “enfatizaram a necessidade de defender as instituições e processos democráticos, abster-se da violência e respeitar plenamente os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

São membros permanentes da cúpula EUA, Rússia, França, Reino Unido e China. O teor do texto foi mais suave do que o rascunho original feito pelo Reino Unido e não fez menção a um golpe —aparentemente para ganhar o apoio da China e da Rússia, que tradicionalmente protegem Mianmar, de uma ação significativa do conselho.

A China também tem grandes interesses econômicos em Mianmar e laços com os militares.

O governo americano determinou nesta terça (2) que considera a tomada de poder em Mianmar um golpe de Estado, o que, na prática, implica em restrições à assistência que os EUA oferecem ao país.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por sua vez, não menciona golpe militar nem fala em presos políticos em nota divulgada sobre o tema.

CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente

1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar

1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência

1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais

1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder

1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz

1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições

2008: Assembleia aprova nova Constituição

2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido

2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento

2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro

2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência

2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar

2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado

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