BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Os mexicanos estão convocados para ir às urnas neste domingo (1º) para uma inusitada votação. Trata-se de uma consulta popular em que terão de responder "sim" ou "não" a uma longa pergunta. De modo resumido, se os cidadãos são a favor ou contra que sejam investigados possíveis delitos cometidos por ex-presidentes do país.

A formulação da pergunta é uma novela em si mesma. O presidente populista de esquerda, Andrés Manuel López Obrador, idealizador da proposta, desejava que a questão fosse mais direta e que nomeasse os ex-mandatários. A Suprema Corte do país aprovou o referendo, mas vetou o formato da indagação. E a pergunta acabou ficando assim:

"Você está de acordo ou não que se levem adiante as ações pertinentes, com apego ao marco constitucional e legal, para empreender um processo de esclarecimento de decisões políticas tomadas nos anos passados por atores políticos e garantir a Justiça e os direitos das possíveis vítimas?".

(Bem) mais longa, porém mais suave, a nova formulação também tem muito de evasiva. Não ficam claros o que são "ações pertinentes", quem são os "atores políticos" (pode-se interpretar que vá além dos ex-presidentes) nem quem são as "possíveis vítimas".

Tanta subjetividade levou alguns críticos a afirmar que o texto, caso seja aprovado, se presta a uma distorção, que sirva aos os objetivos políticos de quem esteja no poder.

Para o historiador e ensaísta liberal Enrique Krauze, AMLO (como é conhecido) estaria trocando a "ditadura perfeita pela ditadura plebiscitária", o que seria mais um sinal de seu autoritário populismo.

"Ditadura perfeita" foi uma polêmica classificação feita pelo Nobel peruano Mario Vargas Llosa para descrever os 70 anos de hegemonia do PRI (Partido Revolucionário Institucional) no país, muitas vezes por meio de fraude.

"Na ditadura plebiscitária, você salta as ferramentas constitucionais já existentes e joga as decisões diretamente ao povo, dando um ar democrático a uma encenação".

No México, ex-presidentes e demais políticos já podem ser investigados, caso haja denúncias. Cabe à Justiça levar adiante uma investigação ou não.

Esta não é a primeira vez que AMLO resolve colocar em prática o que sempre repete como slogan. "Temos um problema? Vamos perguntar o que fazer aos mexicanos".

Já aconteceu antes com temas de menor importância, com caráter apenas consultivo, mas que acabaram fortalecendo suas próprias decisões.

AMLO já perguntou aos mexicanos se desejavam ver interrompida a construção do novo aeroporto internacional da Cidade do México ou reiniciada a obra de uma usina termoelétrica no estado de Morelos. Também foi motivo de consulta popular a obra que é a de mais destaque em sua gestão, a construção do Trem Maya, no sul do país.

A consulta sobre os ex-presidentes, porém, é a única que trata de uma questão constitucional, e tem impacto no sistema político e judicial. Segundo a lei, para que um plebiscito seja vinculante, é preciso que mais de 40% dos eleitores compareçam às urnas. Isso significa, aproximadamente, 37 milhões de pessoas.

Trata-se de um número alto, se levarmos em conta que, nas últimas eleições regionais, em 6 de junho, o comparecimento foi de 52%. Ainda assim, pesquisa publicada pelo jornal El Universal no último dia 23 afirma que 43,4% dos mexicanos pretendem votar.

Para Santiago Aguirre, diretor da ONG de direitos humanos Prodh, a consulta é positiva pois "amplia a democracia participativa no México e coloca no centro das atenções as vítimas das decisões políticas".

Já para Carlos González Martínez, estudioso de direitos humanos, o formato da consulta popular "pode não ser o mais correto, mas trará algo bom que é colocar em discussão uma comissão da verdade para os crimes de violência ocorridos no período".

A medida, caso aprovada, tem na mira os seguintes ex-presidentes: Carlos Salinas de Gortari (1988-94), do PRI, acusado de ter privatizado bens públicos para benefício de amigos do poder; Ernesto Zedillo (1994-2000), também do PRI, por um caso em que, supostamente, teria transformado uma dívida privada em pública; Vicente Fox (2000-06), do PAN, por também supostamente ter realizado concessões à indústria de mineração sem licitação; Felipe Calderón (2006-12), do PAN, a quem AMLO acusa de ter cometido fraude na eleição em que o atual mandatário foi derrotado, e que é investigado por abusos no combate ao narcotráfico; e, por fim, Enrique Peña Nieto (2012-18), do PRI, por corrupção, um processo que já está em andamento.

Para José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da ONG Human Rights Watch, "López Obrador está transformando o sistema de Justiça do México num circo romano, onde os castigos se dividem entre a vontade do imperador e a da multidão".

Vivanco chamou a atenção para o fato de que a Procuradoria-Geral é o órgão que, se tiver evidências de delitos por parte de ex-presidentes, "deve decidir se leva adiante os processos. Essa obrigação não está sujeita à opinião pública".

A analista política mexicana Denise Dresser afirma que a consulta abre espaço para mais impunidade. "López Obrador assumiu com a promessa de que descobriria e mandaria à Justiça os responsáveis pelo massacre de Ayotzinapa [em 2014, quando desapareceram 43 estudantes], e não o fez. Há evidências de que Enrique Peña Nieto participou do esquema de corrupção da Odebrecht, e esses dois casos estão parados. Dá a impressão de que é o presidente quem não quer que se leve adiante processos contra os militares e Peña Nieto".

Segundo Dresser, a estratégia de levar o tema a consulta é justamente para "poder cruzar os braços caso vença o 'não'". Pois, para ela, AMLO estaria aliviado "se os militares, peça-chave de seu governo, não fossem julgados pelo caso Ayotzinapa, e nem Peña Nieto, a quem critica em público, mas com quem parece que há um acordo tácito por impunidade mútua", afirma.

Para Dresser, ainda, o plebiscito seria uma maneira populista de "reafirmar sua liderança, desviando a atenção da população para outros temas importantes, como a pandemia do coronavírus e a economia".

O México já soma mais de 240 mil mortes desde o início da pandemia, e López Obrador tem tido uma postura negacionista desde o princípio.