SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "O cinema era um rio, agora é um delta." Poético e alusivo como suas obras literárias e cinematográficas. Assim o historiador britânico Mark Cousins comenta a abertura que vemos em seu trabalho para o cinema de outros países, generosa em comparação com a maior parte das histórias do cinema, escritas ou visuais. O cineasta conversou com este repórter por email e contou um pouco mais de seu pensamento, de seus gostos e desejos, além de como vê a realização cinematográfica.

"Há mais vozes hoje do que há 50 anos. Isso faz com que o cinema seja mais fértil do que nunca. Pode não ser mais na corrente principal, como nos anos 1950, mas é mais complexo e abrangente, uma aventura."

O pesquisador e cineasta Mark Cousins em imagem de divulgação de seu documentário 'A História do Olhar', que abre o Por isso, em seus trabalhos, somos convidados a um agradável passeio por cenas de filmes de todo o mundo, com as mais inesperadas conexões. Essa é a característica mais marcante de seu famoso monumento cinematográfico, "A História do Cinema: Uma Odisseia", de 2011, assim como de seu livro "A História do Cinema", já publicado em vários países desde 2004, inclusive no Brasil.

Dois novos longas dirigidos por Cousins, ambos produzidos no ano passado, estarão na abertura do É Tudo Verdade, o maior festival de documentários do Brasil, que começa nesta quinta-feira. São eles "A História do Cinema: Uma Nova Geração" --continuação lógica de "Uma Odisseia"-- e "A História do Olhar". Com eles, o prolífico cineasta analisa filmes antigos e recentes de modo pessoal e aprofundado.

Mark Cousins nasceu em Coventry, mas cresceu na Irlanda do Norte, embora atualmente esteja radicado em Edimburgo, na Escócia. Com 56 anos, e apesar de ter escrito em veículos especializados como a Prospect e a Sight and Sound, ele não se considera um crítico de cinema. Ao menos, não na última década.

"Eu nunca resenho filmes, por exemplo. Sou um humilde admirador dos grandes filmes, assim como sou admirador de grandes construções --a arquitetura é meu primeiro amor." Mas seus filmes oferecem um bom pensamento a respeito de outros filmes, com análises e ideias dignas de um bom crítico. Seus filmes são construções.

No polêmico "40 Dias para Aprender Cinema", exibido no É Tudo Verdade de 2020, o historiador e cineasta sugere cortes nos monumentais "Limite", de Mário Peixoto, e "Kwaidan", de Masaki Kobayashi, provocando a ira de alguns críticos brasileiros, que movimentaram as redes sociais naquela época.

Queiram ou não, dizer que um filme deveria ser menor do que é pode ser tabu na crítica de hoje, mas não deixa de ser uma atitude de julgamento crítico. Ele diz que ainda pensa dessa maneira, aliás, e que alguns grandes filmes podem também ser enfadonhos. Quem há de negar? Não é o caso dos filmes lembrados, mas é o de tantos outros.

"Fazer filmes é usar planos e cortes para mostrar o vale das lágrimas e o topo da montanha." Poético e alusivo, novamente. Cousins é da escrita, mas soube aproveitar o poder das palavras em suas produções visuais.

Em "A História do Cinema: Uma Nova Geração", vemos como essa formulação se traduz numa seleção de imagens instigantes, que proporciona análises geralmente precisas e únicas, mesmo que a escolha dos filmes não seja do agrado de todos.

Nem tem como ser, na verdade. Ninguém irá contestar, contudo, que "Coringa" seja um filme importante dentro do que entendemos por contemporaneidade, ou que os documentários ocuparam boa parte do que de mais interessante se fez em cinema neste século.

Em "A História do Olhar", fala do azul como uma das primeiras cores que o marcou e vislumbra conosco o céu. Ao ser instigado a fazer um filme sobre a história das cores no cinema, agradece, pois adoraria fazer algo assim.

Pergunto ainda, provocando sua cinefilia, sobre o magnífico azul do filme português "À Flor do Mar", de João César Monteiro. Ele diz que adora e acrescenta "Blue", de Derek Jarman, "A Liberdade É Azul", de Krzysztof Kieslowski, e o adorável e "blue" "A Estratégia da Aranha", de Bernardo Bertolucci -lembrando que "blue", em inglês, também quer dizer "triste".

Triste pode parecer este belo "A História do Olhar", no qual ele mostra sua própria cirurgia de catarata. Ter a visão ameaçada pode ser terrível para alguém que ama o cinema, mas Cousins organiza seu filme de maneira muito direta, enfrentando o problema e pensando, a propósito, em diversas questões relativas ao olhar, como o voyeurismo, a mania dos selfies, o daltonismo e a curiosidade das pessoas diante de um terrível acidente. É filosófico, sem deixar de esbanjar cinefilia.

Ele se enxerga mais como voyeur ou poeta do que como historiador. "Eu observo --construções, corpos, filmes- e então dou forma a essas observações. Faço um filme a partir delas." Parece simples, mas sem a formação de um crítico e historiador seria mais difícil estabelecer conexões como as que vemos em seus filmes.

Cousins já explorou diversos assuntos -cidades como Estocolmo ou Belfast, uma correspondência visual com a cineasta e atriz iraniana Mania Akbari, o cinema de Orson Welles e de todas as mulheres que se aventuraram na realização e passaram por seu radar, crianças, uma história do olhar, a ideia de aprender cinema, entre outros.

Pergunto se há algo que ele nunca filmaria, algum assunto proibido em seu cinema. "Você vai notar que não filmo muito outras pessoas. Isto porque sou bem tímido e relutante a me intrometer. Filmar, para mim, é também algo gentil. No passado, filmei neonazistas, mas detesto a tensão que isso provoca."

Mesmo se interessando por cinematografias de todo o mundo, não conhecia o longa brasileiro "Sem Essa Aranha", de Rogério Sganzerla, um dos mais emblemáticos do chamado "cinema marginal". Viu trechos no YouTube, e o filme pareceu a ele "efervescente e fabuloso".

Aproveita para discorrer sobre a facilidade de se ver um filme na internet segundos após ter ouvido falar sobre ele. "Nunca subestimemos essa possibilidade."

Sobre "A Agonia", de Júlio Bressane, diz que não vê há muitos anos, mas se lembra de ser semelhante ao grande filme do senegalês Djibril Diop Mambety, "Touki Bouki", "um filme que adoro", ou mesmo "Coração Selvagem", de David Lynch.

Curiosa essa última comparação. Haverá alguma inusitada conexão entre Bressane e Lynch em algum de seus futuros estudos visuais? Esperemos. E que Cousins faça mais e mais filmes. O espectador certamente se emocionará com trechos dos longas que exibirá nos próximos dias.